30.12.15

um osso

--Ah! Não queria ter a bondade de me dar um osso para o meu cão? - perguntei. - Apenas um osso, não precisa de ter mais nada, só para ele ter alguma coisa que levar à boca.

Deram-me um osso, um ossinho esplêndido, que ainda tinha agarrada alguma carne e que eu meti dentro da sobrecasaca. Agradeci ao homem tão fervorosamente que ele ficou a olhar-me pasmado.

--Não tem nada que agradecer - disse ele.
--Tenho sim, não diga isso - murmurei, - é muita bondade da sua parte.

E voltei a subir. O coração batia-me violentamente.
Entrei furtivamente na passagem Smedgangen o mais fundo que pude chegar e parei diante de um portão deteriorado, junto de um pátio traseiro. Não se via qualquer luz em parte alguma, à minha volta estava escuro, felizmente. Pus-me a roer o osso.

O osso não sabia a nada, mas soltava um cheiro áspero a sangue e tive de vomitar logo a seguir. Tentei de novo. Se ao menos conseguisse aguentá-lo no estômago, faria decerto algum efeito; tratava-se de lograr que se mantivesse lá dentro. Mas voltei a vomitar. Zanguei-me e mordi a carne com brusquidão, arranquei um pedacinho e engoli-o violentamente. Não me serviu de nada; assim que as migalhinhas de carne tinham aquecido no estômago, lá vinham elas para cima outra vez. Cerrei os punhos com louca exasperação, desatei a chorar desamparado e roí como um possesso. Chorei, vi o osso ficar molhado e sujo pelas lágrimas, vomitei, praguejei e voltei a roer. Em voz alta amaldiçoei todos os poderes do mundo e mandei-os para o Inferno.


Fome, Knut Hamsun, cavalo de ferro, p. 178.


29.12.15

Rothko Chapel, Morton Feldman

«É melhor começarmos lá de trás e por Dominique Isaline Zelia Henriette Clarisse Schlumberger, protagonista de uma dessas histórias extraordinárias apenas possíveis na Europa do século passado. 

O pai Conrad era um físico, professor em Paris na École de Mines, que no início dos anos 20, em colaboração com o irmão engenheiro Marcel, idealizou um sistema à época completamente inovador para a extração dos metais e dos gases contidos no subsolo. 

Fundada a sua sociedade, os irmãos andarão num afã a dar a volta ao mundo inteiro, naturalmente bastante bem retribuídos pelo seu trabalho, sem nunca esquecerem a vocação para a investigação, tanto assim é que a Sociedade Europeia de Exploração Geofísica instituirá um prémio com o seu nome. 

A sua filha Dominique licenciar‑se‑á em matemática para depois se interessar pelo cinema, descobrimo‑la em Berlim como assistente de Joseph von Sternberg durante a filmagem de O anjo azul. Em 1930, encontrará e casará com o banqueiro Jean de Menil. 

Durante a ocupação nazi de Paris, a família emigrará para os Estados Unidos, onde o pai e o tio darão continuidade à sua sociedade de extração (sobretudo petrolífera, a sede ficará obviamente no Texas), enquanto Dominique e Jean, agora John, começarão a reunir uma extraordinária coleção de arte moderna, que chegará a ser constituída por cerca de dezassete mil obras entre quadros, estátuas, fotografias e objetos de vários géneros. 

Os dois valer‑se‑ão sempre de um forte empenho social e ético, colaborando com importantes expoentes da batalha pela integração e pelo reconhecimento dos direitos civis, ao ponto de serem promotores das primeiras mostras de arte inter‑raciais nos Estados Unidos e de fazerem ouvir a sua voz inclusivamente fora do seu país de adoção. 

Em 1964, encomendarão ao pintor Mark Rothko as decorações de uma capela a ser erguida em Houston. 

Embora os De Menil fossem católicos praticantes, o edifício não terá nenhum fim confessional, é antes concebido como local onde qualquer pessoa, independentemente da fé professada ou abjurada, possa encontrar espaço para a meditação, a oração e a contemplação. 

A construção arrasta‑se por muito tempo, só será aliás terminada em 1971. Rothko não chegará a ver os seus trabalhos nas paredes, pois, abatido por uma longa depressão, porá termo à vida poucos meses antes. 

Para a inauguração da Rothko Chapel será encomendada uma peça a Morton Feldman

Com quase dois metros de altura, corpulento, o olhar perspicaz por trás das grossas lentes de míope, Feldman sempre cultivara uma relação muito estreita entre a sua música e as artes figurativas, para além de que tinha sido um bom amigo do pintor desaparecido, vinte anos mais velho. 

Personalidade inteiramente laica, dotado de um péssimo caráter e de um humor cáustico, é aparentemente alheio a qualquer possível suspeita de misticismo. 

Como quase todos os compositores da sua geração, dera por si a escrever música quando o panorama parecia suspenso entre as lisonjas do acaso e os rigores do estruturalismo, mas ele, espírito demasiado livre para o segundo embora ainda assim desejoso de ter controlo sobre a matéria sonora de uma forma bem mais rigorosa do que teria sido possível abraçando a música estocástica, acabará por avançar pela música do século passado com um passo solene e completamente especial; ao ouvirmos as suas composições, temos por vezes a ilusão de a música ter sido uma descoberta sua, como se tivesse sido ele o primeiro a pôr a hipótese de os sons poderem ser pensados, organizados de certa forma e depois emitidos por um qualquer aparelho inventado para tal fim. 

A peça em questão supõe um pequeno número de executantes, flauta, celestino, coro misto, percussões e viola. As dinâmicas vão do pianissimo, literalmente no limite do audível, a momentos de maior concitação, embora privilegiando dinâmicas que se viram para o silêncio, a escansão rítmica é quase impercetível e só de  maneira a que se consiga apreender com o ouvido um arco de tempo suficientemente longo (algo de semelhante acontece ao ouvirmos a música gagaku japonesa). É um organismo que parece feito de vazio ao mesmo tempo que pulsa iridescente, as transparências de Feldman têm corpo e peso, uma espécie de milagre que nos obriga a rever aquilo que pensamos erradamente acerca da música moderna. 

Poderia ser suficiente, mas para o final da peça, que dura cerca de vinte minutos, o vibrafone conquista um ritmo regular e quase vivace sobre o qual se emancipa a viola para cantar uma melodia hebraica de absoluta e transcendente beleza. Uma epifania; a porta da casa em que estamos encerrados a abrir‑se para o mundo exterior.»



28.12.15

1597 / Sevilha - Num lugar do cárcere

Foi ferido e mutilado pelos turcos. Foi assaltado pelos piratas e açoitado pelos mouros. Foi excomungado pelos padres. Esteve preso em Argel e em Castro del Rio. Agora está preso em Sevilha.
Sentado no chão, junto da cama de pedra, duvida. Molha a pena no tinteiro e duvida, os olhos fixos na luz da vela, a mão útil quieta no ar.
Valerá a pena insistir? Ainda lhe dói a resposta do rei Filipe, quando pela segunda vez lhe pediu emprego na América: procure por aqui em que se lhe faça mercê. As coisas mudaram desde então, mudaram para pior. Antes teve, ao menos, a esperança de uma resposta. De algum tempo para cá, o rei de negras roupas, ausente do mundo, não fala senão com os seus próprios fantasmas entre os muros do Escorial.
Miguel de Cervantes, sozinho na sua cela, não escreve ao rei. Não pede nenhum cargo vacante nas Índias. Sobre a folha em branco, começa a contar as desventuras de um poeta errante, fidalgo dos de lança em estaleiro, escudo antigo, rocinante fraco e galgo corredor.
Soam tristes ruídos no cárcere. Não os ouve.


Memórias do Fogo: Os Nascimentos, Eduardo Galeano, Livros de Areia Editores [tradutor: António Marques] 

26.12.15

mel que me adoça


A Vida Secreta das Abelhas de Gina Prince-Bythewood


duas colmeias diferentes, mas um mel igualmente aromático.


A Morte de Um Apicultor de Lars Gustafsson

«Una vez un perro le ladró a una máscara que hice, ha sido el comentario más honorable que he recibido.»

Dar explicaciones de la pintura es un poco gratuito; se intelectualiza algo que realmente no es del mundo del intelecto.

Darvault (1950), Leonora Carrington


Leonora, que viveu os últimos setenta anos da sua vida (morreu aos 94) no México, é considerada por muitos como  a última dos grandes surrealistas. um dia amou e foi amada por Max Ernst.



mais info aqui: Artsy


24.12.15

boas festas a todos os leitores.









7

Um certo Dezembro, os tios chegaram muito mais tarde do que o costume. Só conseguiram subir a montanha no dia de São Misham e, quando chegaram a casa, encontraram-na em silêncio. Não havia sinais de alegria nem do alvoroço habituais.

A Avó percebeu nesse instante que algo de errado se passava.

--Onde está o meu filho Mark? - perguntou ela. - Porque não o ouço entre vós? - e o tio Acraud teve de lhe dizer a verdade:

--Mãe, ele morreu. O seu filho Mark não voltará para casa nunca mais.

[...]

O seu desgosto contagiou toda a aldeia. Era como se a pedra central de uma abóbada tivesse sido retirada; não havia nada que mantivesse as pessoas unidas.


(cont., mas eu fico por aqui. se quiserem saber um pouco mais da escritora, cliquem.)


23.12.15

um aplauso à mãe natureza










national geographic


6

[--devagar rapariga, não as fures, era assim que ela me falava. eu, a princípio, era sempre pelo tudo ou nada, o sim ou o não sem pestanejar, infantil, maniqueísta. depois percebi que entre a passividade da planura e a agressividade do rasgo, havia a perfeita concavidade da filhós. a minha mãe, acérrima defensora do reforço positivo, elogiava-me então a perícia. e eu, nesses momentos, era feliz. muito feliz.]

...

Mas aos primeiros sinais da Primavera, os tios tornavam a ficar inquietos e começavam a verificar o equipamento, discutindo mapas e rotas, consertando alforjes e botas e observando os picos das montanhas em busca de sinais de que a neve estava em retirada.

Nessa altura, a Avó começava a ficar cada vez mais calada. Nunca lhes pedia que ficassem mais tempo em casa, nunca fomentava controvérsias sobre a sua partida, mas o seu rosto parecia murchar e encolher, tornando-me mais pequeno e enrugado, enquanto ela se aconchegava na sua manta de retalhos.

No dia de São Petrag, quando os tios partiam, feitas as despedidas, e desciam ruidosamente a montanha por entre a neve derretida e as árvores cobertas de botões cor-de-rosa reluzentes, a Avó mergulhava num silêncio que durava, por vezes, cinco ou seis semanas; passava os dias sentada com o rosto virado a leste, sem dizer uma palavra e sem se mexer, bebendo o seu leite e retirando-se para o quarto à noite, sempre em silêncio e abatida; era necessário que viesse o sol quente e os jacintos doces e selvagens de Maio para que ela se alegrasse.

Depois, pouco a pouco, começava a ficar mais animada e dizia:
--Agora já só faltam seis meses para eles regressarem.

Mas o jovem Mark comentava com a prima Sammle:
--A cada ano que passa, a Avó demora mais tempo a acostumar-se.

E Sammle retorquia, a tremer, apesar do tempo quente de Maio:
--Talvez um ano, quando eles voltarem, ela já cá não esteja. Está a ficar tão pequenina e tão magrinha; dá para ver à transparência das mãos, como se fossem folhas. - e Sammle levantava a sua mão jovem e esguia contra a luz do sol para ver o sangue a brilhar por baixo da pele translúcida.

--Não sei como é que eles iriam suportar - dizia Mark, pensativo - se, quando voltassem, tivéssemos que lhes dizer que ela tinha morrido.

Mas não foi isso que aconteceu.

(cont.)

5

[tenho de fazer batota e saltar umas linhas, que daqui a pouco é hora de almoço e ainda tenho de ir fazer as filhós. como antigamente, a minha mãe, delicada, estica-as suavemente na palma da mão, para depois as lançar com jeitinho na panela de óleo a ferver, e eu, endiabrada, espeto-lhes a colher de pau no bandulho, para lhes dar a concavidade.]

... ... ...

Os meses a seguir ao Natal eram a altura mais feliz da vida da Avó. De bem consigo mesma, agradecida, com os filhos em casa sãos e salvos, sentava-se ao canto da lareira, na grande sala de madeira da família. O vento podia uivar, a neve podia amontoar-se lá fora cada vez mais, que nada disso a preocupava, pois a sua família e toda a aldeia estavam bem abastecidas de farinha, petróleo, lenha, carne, ervas medicinais e raízes. As crianças tinham os seus livros e brinquedos, aprendiam as suas lições com o velho padre, faziam teares e rocas de fiar ou esculpiam bancos e cadeiras e arcas com as ferramentas que os tios lhe tinham trazido. Os tios descansavam e contavam histórias das suas viagens; o Tio Mark tocava a sua flauta horas a fio, o Tio Acraud fazia desenhos a carvão dos locais que tinha visitado e a Avó, passando os dedos pelo papel repleto de linhas, ia explicando os desenhos enquanto tio Mark tocava:

--Uma grande cordilheira, como linhas castanhas e enrugadas na linha do horizonte; uma vasta planície de loira areia prateada, com áreas de um azul muito, muito pálido; não me parece que seja água. Aqui há linhas estranhas pela areia, onde os homens outrora lavraram muito há muito, muito tempo; e uma grande mancha verde cristalino, atravessada por aquilo que parece ser uma estrada. E aqui há uma pequena região tom de ameixa, encostada a uma área vermelho ferrugem. Acho que são as cores da terra nestas paragens; ficam situadas muito alto nas montanhas, em zonas de grande secura devido à altitude e o solo brilha com pequenas partículas de metal.

--A Mãe descreveu-o melhor do que eu próprio alguma vez o conseguiria fazer! - exclamava o Tio Acraud, enquanto as crianças, sustendo a respiração, tal o fascínio e a curiosidade, se sentavam de pernas cruzadas à volta da sua cadeira.

--Sim, mas não o consigo ver, de todo, Acraud, a não ser que os teus olhos o tenham visto primeiro, e não o consigo ver sem a música do Mark para me ajudar.

--Como é que a Avó consegue ver? - perguntavam as crianças às mães, e Argilla, Grippa e Tassy respondiam:

--Ninguém sabe. É um dom da Avó. Só ela o consegue.

(cont.)

[é bonito, não é?]  

4

...

Os pequenos presentes que tinham trazido eram distribuídos pela aldeia: tesouras, ferramentas, medicamentos, plantas, peças de tecido, lingotes de metal, bebidas, armas de fogo e instrumentos musicais, e só depois tinha lugar uma grande festa com banquete.

Mas só na manhã do dia de Natal é que a Avó e as crianças recebiam os presentes especiais que lhe tinham sido trazidos pelos tios; e esta oferta obedecia sempre ao mesmo cerimonial.

O Tio Mark ficava atrás da cadeira da Avó a tocar uma pequena flauta que tinha adquiridos algures durante as suas viagens; era feita de madeira polida, escura e maciça, com orifícios em prata e o bocal em âmbar. O Tio Mark tocava sempre a mesma melodia nestas alturas, muito suavemente. Era uma melodia que tinha ouvido pela primeira vez, dizia ele, quando ainda era muito jovem, numa altura em que escapara por pouco de cair numa fenda da encosta, e uma voz lhe tinha falado, ou assim lhe parecera, das entranhas da própria montanha, alertando-o para ver onde punha os pés e para ter cuidado, já que a família dependia dele. Era uma melodia doce e suave, que lembrava a Sandri, a neta do meio, os sons primaveris: o vento cálido, a neve derretida a pingar dos espigões do telhado, os pássaros e os seus chamamentos de acasalamento.

Enquanto o Tio Mark tocava a flauta, o Tio Emer entregava os presentes à Avó. E ela - e aqui está a parte estranha - ela, que era totalmente cega durante todo o ano, que nem conseguia ver a própria mão à frente da cara, pegava no objecto com os dedos e identificava-o no mesmo instante.
--Um pente de madrepérola com tachas de prata, para a Tassy... vem da Babilónia. Um xaile de seda azul e rosa, da Índia, para a Argila. Um jogo de madeira, com cavilhas de marfim, para o pequeno Emer, de Damasco. Um broche de ouro, de Hangku, para a Grippa. Um livro de rimas, de Paris, para a Sammle, com encadernação de couro escarlate.

(cont.)


3

[na verdade, se bem me lembro, era precisamente com esta ânsia, que eu, noutros tempos, esperava a madrinha, em Agosto...]

...

--Sim, sim, tenham calma, não nos ensurdeçam... pobres e cansados viajantes que nós somos! Deixem-nos em paz para podermos escalar este monte infernal! Está tudo ali, descansem, o xaile, a caixa e os livros, além de outras coisas, alfinetes e agulhas, fruta e uma garrafa ou duas de vinho, e algumas lembranças para distribuir pela aldeia. E agora tenham a bondade de nos dar uns minutos para recuperamos o fôlego - diziam eles, enquanto as crianças dançavam à sua volta, ajudando-se mutuamente a carregar os pacotes mais pequenos, sem darem tréguas à torrente de perguntas:
--Viu o Grande Cã? O Akond de Swat? O Fon de Bikom? O Sultanato de Rum? Foi ao Catai? À cidade antiga de Moscovo? Foi ao distrito de Dalai, na Tanzânia? Andou de barco, de camelo, de lama, de elefante?

E, no cimo do monte, a Avó esperava-os no seu alpendre, indiferente ao tempo que fizesse ou à hora tardia a que chegassem, majestosamente sentada, envolta mas suas peles e na manta de retalhos, enquanto as tias corriam de um lado para o outro trazendo pedras quentes para lhe colocarem debaixo dos pés. Os tios iam sempre abraçá-la primeiro, com muito afecto e respeito, e só depois se viravam para as suas mulheres e cunhadas.

(cont.)


[sogra difícil?...]


2

...

E então, toda a família e toda a aldeia entravam em alvoroço, tal qual um formigueiro quando a pá destrói o montículo de terra. As mulheres atiçavam o fogo e iam buscar a melhor toalha de linho, vinho, carne-seca e ovos de conserva; deixavam a massa do pão a levedar, faziam bolos de mel e aveia e traziam das despensas os potes de grés com a compota de morangos; e as crianças, com os criados e metade da aldeia atrás, desciam a correr os perigosos trilhos ziguezagueantes, ao encontro da caravana.

O caminho era demasiado íngreme para as pesadas carroças, que eram dispensadas, e os salários pagos aos carroceiros, que, assim, podiam ir à sua vida. Depois, entre risos, gritos e milhões de perguntas feitas pelas crianças, as cargas eram divididas e levadas encosta acima por mulas ou ombros humanos. Por vezes, os tios voltavam para casa de noite, debaixo de um nevão, guiados pela luz enfumarada dos archotes; mas as crianças e toda a família sabiam da sua chegada com antecedência, e estavam sempre lá, prontos para os receber.

--Tio Mark, trouxe o xaile chinês para a Avó? Tio Emer trouxe a caixa envernizada para o rapé da Tia Grippa, que tanto lhe pediu? Tio Acraud, encontrou os castiçais de vidro? Tio Gonfil, trouxe os livros?

(cont.)


[e então, acham muito consumista? não sejam assim, as crianças são iguais em todo o lado. a critica do machismo até entendo, as mulheres a trabalhar no duro e os heróis a correr mundo... mas a história continua, não sejam tão intolerantes, é quase natal.]


Se eu tivesse um filho,

esta seria a história que hoje lhe iria contar.


A DÁDIVA -- Joan Aiken


As semanas que antecediam o Natal eram sempre vividas com grande emoção e, também tremenda expectativa, enquanto a família esperava ansiosa  que os tios, que tinham partido na Primavera, regressassem das suas viagens desse Verão pelas rotas dos mercadores: o Tio Emer, o Tio Acraud, o Tio Gonfil e o Tio Mark. Partiam sempre juntos, descendo a encosta alcantilada, mas depois, chegados ao sopé da montanha, seguiam caminhos diferentes ao longo do vale profundo e estreito. O Tio Mark e o Tio Acraud dirigiam-se para leste, em direcção às grandes planícies, enquanto o Tio Emer e o Tio Gonfil viravam para oeste, para as cidades, os rios e o mar a ocidente.

Em seguida, e antes de se despedirem das montanhas, separavam-se uma vez mais, seguindo o Tio Acraud para sul e o Tio Emer rumo ao norte, o que levava as crianças a pensar que a sua família estava espalhada pelo mundo inteiro, em constante expansão como a teia de uma aranha.

A Primavera e o Verão eram passados entre as actividades habituais, cavando e semeando as parcelas na encosta íngreme, pescando, caçando lebres, apanhando morangos silvestres, usando o tempo da melhor maneira. Depois, perto do Dia de São Drimma, quando os ventos começavam a soprar e a neve a cair nos picos mais altos, descendo cada vez mais rumo ao vale, a Avó começava a ficar mais inquieta.

Passava o Verão calma e em silêncio, sentada na sua cadeira de baloiço no grande alpendre de madeira, enrolada numa manta de retalhos, com os olhos cegos virados para leste, em direcção às terras para onde Mark, o seu filho mais velho e o mais querido, tinha ido. Mas quando os ventos dos finais de Setembro começavam a soprar, por alturas do Michaelmas, a Festa de São Miguel, e os lobos se tornavam mais ousados e o gado era trazido para o estábulo por baixo da casa, a Avó começava realmente a ficar inquieta.

Quando Sammle, a neta mais velha, lhe trazia o leite quente, ela agarrava o pulso magro da menina e perguntava: 
--Diz-me, filha, quantos dias faltam para o Dia de São Froida? - (que é o primeiro dia de Dezembro).
--Dezoito, Avó - respondia Sammle, beijando-lhe a face enrugada.
--Tantos, ainda? Tantos até ao dia em que temos a esperança de os voltar a ver?
--Não se preocupe, Avozinha, de certeza que os Tios vão voltar sãos e salvos. Talvez cheguem mais cedo este ano. Talvez voltem ainda antes da Festa de São Melin - (que é a 14 de Dezembro).

E então, algures pelos meados de Dezembro, lá se ouvia o eco das suas grandes carroças a tilintar e a rolar pelos vales serpenteados. O jovem Mark (filho do Tio Elmer), postado no seu ponto de vigia no cimo de um grande pinheiro no alto de um penhasco, vislumbrava o reflexo da medalha de bronze na cabeça de uma mula de carga ou o sol a luzir no cano de uma carabina, e vinha a correr trazer a boa nova.
--Avozinha! Avozinha! Os Tios estão quase a chegar!


(continua)



21.12.15

Amar um Cão*

«Estreia a 24 de Dezembro nos cinemas. 
A partir da sua própria experiência e das suas memórias, marcadas pelas perdas recentes da mãe e do marido Lou Reed, a realizadora Laurie Anderson traça uma pequena reflexão sobre temas como a vida, o amor e a morte. »



[*lembrei-me do livro maravilhoso de Maria Gabriela Llansol e de Jade]


fome

Estou ainda na fase em que observo o recém-chegado, numa mesa de café. Já lhe posso tocar, perceber se tem as mãos frias, se prefere chá ou café, água fresca ou natural, e tudo o mais que se consiga subentender pela capa escolhida, a editora que o pariu e a graça com que se apresenta.

Fome, de Knut Hamsun, [editado em Portugal pela cavalo de ferro e traduzido do norueguês por Liliete Martins] chega-me em tons de azul, daquele azul de Picasso, na sua época triste. Não deixa de ser curioso, porque sempre achei que a fome era azul, tal como a pobreza.
Para meu deleite, o prefácio de Paul Auster (A arte da Fome) inicia com um excerto de Antonin Artaud. Se de Paul Auster pouco li (reconheço a minha antipatia por nomes tão "americanos"), Artaud vive no meu coração há já alguns anos e se a alzheimer não mo roubar, há-de acompanhar-me até à cova.


Aquilo que é importante, parece-me, não é tanto
o defender a cultura, cuja existência nunca 
impediu um homem de passar fome, 
mas sim o extrair daquilo que se chama cultura, 
ideias cuja força motivadora seja idêntica à da fome.



Da literatura da fome, recordo Abismo e outros Contos, de Jean Meckert, um livro que me deixou algumas queimaduras na ponta dos dedos e o coração mais dorido. As provações de Meckert confundem-se entre os narradores. 

«A miséria nunca chega de repente. Se não fosse assim, poderíamos lutar, saberíamos de cor as pontas por onde pegar, aprenderíamos a defender-nos em manuais de tuta-e-meia. Não, o que é horrível é que a coisa é insidiosa, vem aos poucos, pé ante pé, como uma sacana de uma tuberculose; pensamos estar de boa saúde, pomo-nos com bazófias e depois caímos de podres. E nessa altura não são os pulmões, a bexiga ou o pâncreas que são atingidos, mas o próprio moral e tudo o resto por acréscimo.»



Voltando ao "livro azul" e a Knut Hamsun, seu autor. Deste, sei apenas que ganhou, em 1920, o prémio Nobel da literatura e foi (grande) simpatizante do nazismo. O livro Fome data de 1890, não se esperando encontrar contaminações de ambos os flagelos.


Porque o Natal sempre me lembra a pobreza e abandono, ideia antagónica à maravilhosa realidade que se vive por essas dezenas de superfícies comerciais, é com Fome que irei esperar o menino jesus.



«Uma solidão demasiado ruidosa»

I

Há trinta e cinco anos que trabalho com papel velho e é essa a minha love story
Há trinta e cinco anos que prenso papel velho e livros, há trinta e cinco anos que 
me sujo de letras, de tal modo que me pareço com as enciclopédias de que 
durante esse tempo todo devo ter prensado pelo menos três toneladas: sou um 
cântaro cheio de água viva e água morta, basta inclinar-me um pouquinho e
jorram de mim ideias lindas; sou culto independentemente da minha vontade 
e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas, e saídas da minha cabeça, 
e que ideias li. Foi assim que, durante estes trinta e cinco anos, me liguei a mim 
próprio e ao mundo à minha volta; é que, quando estou a ler, afinal não leio, 
apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, 
como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que a ideia 
se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente 
que penetra não só no meu cérebro e no coração mas pulsa também nas minhas 
artérias até às raízes dos capilares.

Uma Solidão Demasiado Ruidosa, Bohumil Hrabal

a cor da romã

The Color of Pomegranates, Sergei Parajanov (1968)

não sei se a luz lhe descende de Gregório, se da água salgada de Cáspio, mas a bela Arménia é umas das mulheres mais interessantes que conheci em 2015. 
um brinde à luxuriosa romã.


[o filme, mais do que poético, é um poema visual e sonoro.]


20.12.15

ipsis verbis

“A categoria dos chatos provisórios é formada por três tipos: o bêbado, o apaixonado e os pais do recém-nascido. Só os suporta quem está no mesmo estado”



19.12.15

«Reúnem-se os pássaros»

Bem-vinda sejas, ó Poupa! Ó tu, que foste guia do rei Salomão e o verdadeiro mensageiro do vale, que tiveste a boa fortuna de chegar aos confins do reino de Sabá! Foi deliciosa a tua fala gorjeada com Salomão; por teres sido sua companheira, foi-te imposta uma coroa de glória. Apenas precisas de pôr a ferros o demónio, o tentador, e, feito isso, entrarás no palácio de Salomão.

Ó Lavandisca, que te pareces com Moisés! Levanta a cabeça e faz soar a charamela, para celebrar o verdadeiro conhecimento de Deus. Como Moisés, viste o fogo ao longe; és, de facto, um pequeno Moisés no monte Sinai. O meu discurso é sem palavras, sem língua, sem som; compreendo-o, pois sem mente, sem ouvido.

Bem-vindo sejas, ó Papagaio! São belos o teu manto e o teu colar de fogo: o colar ajusta-se ao habitante do mundo inferior, mas o manto é digno do Céu. Pôde Abraão livrar-se do fogo de Nimrod? Desfaz a cabeça de Nimrod e faz-te amigo de Abraão, que era amigo de Deus. Quando te tiveres libertado das mãos de Nimrod, veste o manto de glória e não temas o colar de fogo.

Bem-vinda sejas, ó Perdiz! Ó tu, que andas com tanta graça e te comprazes no voo sobre as montanhas do conhecimento divino! Ergue-te em alegria e pondera os benefícios do Caminho. Bate com o martelo na porta da casa de Deus; e derrete, humilde, as montanhas dos teus desejos perversos para deixar sair o camelo.

Saudações, ó Falcão Real! Ó tu, que tens a vista penetrante, quanto tempo permanecerás assim, violento e apaixonado? Finca as tuas garras na letra do amor eterno, mas não rompas o selo enquanto não for chegada a eternidade. Mistura o espírito à razão e vê a eternidade anterior e a posterior como uma única. Quebra a tua vil carcaça e instala-te na caverna da unidade; Maomé irá então ter contigo.

Saudações, ó Codorniz! Quando ouves no teu espírito o alast (4) do amor, o teu corpo de desejo responde: balé (5), com desprazer. Como o Messias, inflama-te com o amor do Criador. Queima esse burro e acolhe o pássaro do amor, para que o Espírito de Deus possa chegar felizmente a ti.

Saudações, ó Rouxinol do jardim do Amor! Projeta as tuas notas plangentes, filhas das feridas e das dores do Amor. Resgata ao coração meigos lamentos, como David. Franqueia a tua garganta melodiosa e canta as coisas do espírito. Mostra aos homens, com as tuas canções, o verdadeiro Caminho. Funde, como cera indolente, o duro ferro do teu coração e serás como David, ardente no amor a Deus. 

Saudações, ó Pavão do jardim das Oito Portas (6)! Tu te afligiste por causa da serpente de sete cabeças, por cujo intermédio foste expulso do Éden. Se te livrares da cobra detestável, Adão te levará com ele ao Paraíso. Saudações, ó excelente Faisão! Tu vês o que está muito longe e percebes o manancial do coração imerso no oceano de luz enquanto permaneces no poço da escuridão e na prisão da incerteza. Deixa o poço e ergue a cabeça para o trono divino. 

Saudações, ó meiga Rolinha, voz de doce arrulho! Saíste contente e voltaste, com a tristeza no coração, para uma prisão tão estreita quanto a de Jonas. Ó tu, que vagueias para lá e para cá como um peixe, podes perder forças com malevolência? Corta a cabeça desse peixe para que possas alisar as tuas penas nos píncaros da Lua. 

Saudações, ó Pombo! Entoa as tuas notas para que eu possa espalhar à tua volta sete medalhas de pérolas. Visto que o colar da fé te envolve o pescoço, não te ficaria bem ser infiel. Quando entrares no caminho da compreensão, Khizr (7) te trará a água da vida. 

Bem-vindo sejas, ó Falcão! Tu, que alçaste voo e, depois de te rebelares contra o teu amo, curvaste a cabe- ça! Aguenta-te convenientemente. estás preso ao corpo deste mundo e, assim, longe do outro. Quando estiveres livre dos mundos, descansarás na mão de Alexandre. 

Bem-vindo sejas, ó Pintassilgo! Vem com alegria. Anseia por agir e vem como o fogo. Quando desfizeres os teus vínculos, a luz de Deus mais ainda se manifestará. Visto que o teu coração conhece os Seus segredos, sê fiel. Quando te houveres aperfeiçoado deixarás de existir. Mas Deus subsistirá.




__________________
4 Primeira palavra da passagem do Alcorão: «Não sou eu o vosso Senhor?» (VII, 171). 
5 Sim. 
6 As portas do Céu. Possível referência aos «oito paraísos», ou «lugares da perfeita felicidade», de que fala o Alcorão.
7 Al-Khizr (o Verde). Homem-santo do Islão.


Borges, o tacteador de palavras

O Método

«Borges tem um método insólito de trabalhar. Dita cinco ou seis palavras que iniciam uma prosa ou um primeiro verso de um poema e imediatamente pede para lhas lerem. O indicador da sua mão direita segue sobre as costas da sua mão esquerda a leitura como se percorresse uma página invisível. A frase é relida uma, duas, três, quatro, muitas vezes até que encontra a continuação e dita outras cinco ou seis palavras. Em seguida pede para lhe lerem tudo o que está escrito. Como dita com pontuação, há que ler dizendo-lha. Relê para si esse fragmento, que acompanha com o movimento das mãos, até que acha a frase seguinte. Cheguei a ler uma dúzia de vezes um trecho de cinco linhas. Cada uma dessas leituras vai precedida das desculpas de Borges que, de certo modo, se atormenta bastante com os supostos incómodos que faz sofrer ao seu escriba.»

(Contado por María Esther Vásquez.)

Borges Verbal, Pilar Bravo e Mario Paoletti, Assírio&Alvim


16.12.15

Let's Dance



obrigada, vidro azul

o segredo

Gelatina tem um segredo. É um segredo tão grande, tão grande, que lhe salta pelos olhos. É por isso que fica corado quando a ideia lhe atravessa o pensamento. Falar nele, nem pensar, os lábios delicados viram chumbo, esmagam qualquer palavra mais traiçoeira. O seu segredo é a sua maior vergonha.

Gelatina ainda tentou camuflar a vergonha, foi por isso que se deixou engordar, engordou tanto até ficar obeso, mas o segredo também ganhou volume, começou a transpirar palavras, gestos comprometedores. Era como se tudo o que dizia, tudo o que fazia, denunciassem o peso que transportava na consciência.

Gelatina aprendeu, por experiencia própria, que o remorso ataca sobretudo à noite. Ensaiou mil e uma maneiras de o despistar, chegou a contar todas as ratazanas que existem à face da terra para ver se agarrava um sono salvador, mas o segredo traz a insónia colada à pele, tem todo o tempo do mundo para espalhar o seu veneno.

Gelatina também sabe que o seu segredo é uma flor de estufa que só sobrevive no mundo da mentira. Que o remorso cresce a cada dia, porque não o pode partilhar com os amigos. Por isso, resolveu encará-lo de frente. Sacou um lápis, estendeu a folha branca, pesou cada palavra, evitou adjectivos. Foi assim que passou o segredo a limpo.

Gelatina tinha os braços dormentes quando acabou de escrever a sua confissão. Colocou um ponto final – é o que sempre acontece com tudo o que é importante e definitivo – mas, pensando melhor, podia ter utilizado as reticências. Feitas as contas não tinha apenas um, mas muitos segredos no armário. Sentiu-se exausto.

(…)

Nem tudo começa com um beijo, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira

15.12.15

«Um pouco mais adiante, no Largo do Directório, fica o Teatro de São Carlos, edificado em 1792,

Teatro Nacional de São Carlos

em homenagem à Princesa Carlota Joaquina de Bourbon, por iniciativa de vários comerciantes e capitalistas de Lisboa, sendo seu arquitecto José da Costa e Silva. As obras começaram a 8 de Dezembro desse ano e seis meses depois o teatro estava acabado, tendo sido inaugurado a 30 de Junho de 1793 com a ópera de Cimarosa La Ballerina Amante.

(...)

O Teatro Nacional de São Carlos, que custou 166 contos (36 880 libras) e foi construído ao gosto do teatro homónimo de Nápoles, que ardeu completamente a 13 de Fevereiro de 1816, é desde 1854 propriedade do Estado. É pena que ele esteja presentemente a ser utilizado por companhias de teatro e não de ópera.»

Lisboa, O que o Turista deve ver, Fernando Pessoa (dizem alguns, nem pensar!, afirmam outros)


13.12.15

História da Bela Fria

Foi a partir daí que comecei a achar que afinal, sendo agradável e enriquecedor, não era assim tão inofensivo pertencer ao mundo das amigas da minha mãe. Pouco a pouco fui-me desligando delas e no funeral de Aline verifiquei que já não conseguia passar para o seu lado, como se a morta tivesse erguido uma barreira definitiva entre nós. A minha mãe reparou e espantou-se com o que chamou a minha ingratidão monstruosa depois de ter recebido tantas provas de amizade durante vários anos, "Não sabes gostar de quem gosta de ti. Gostas e não gostas conforme te dá o vento. Culpas as pessoas e quem muda és tu. Nunca serás fiel a ninguém. Ao menos espero que saibas fingir diante do meu cadáver. "
Prometi-lhe, em tom de farsa, que não teria razão de queixa. Podia falar levianamente porque só a morte dela me importava e no íntimo alimentava a esperança de ter uma mãe imortal.

História da Bela Fria, Teresa Veiga
(contos, 1992)



«Todas as outras ocupações humanas tendem mais ou menos a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo.»*

sou fraca de nomes, já nem perco tempo a tentar perceber a razão. o nome de Teresa Veiga, que me lembre, vi-o algumas vezes no site da Cotovia, estive quase à encomenda, mas nunca calhou. quando, já este ano, pela Tinta da China (com uma capa de um azul-petróleo de suspirar e sob tão curioso nome - Gente Melancolicamente Louca -, [o advérbio, velho amigo pessoal, enrola-se na língua, delicioso, lento, demorando-se nas consoantes líquidas, nasalizando-se em comprimento]), a escritora esteve em destaque nas livrarias, olhei várias vezes aquela capa. não fosse a minha doença social, irritante, de me aborrecer, mesmo antes de os comprar, com os livros que toda a gente comenta e diz que lê, de me enfastiar com as modas literárias, quase de forma sobranceira, e teria tido o prazer de começar a ler esta narradora incrível há muito mais tempo. 
felizmente, há isto dos blogs. e eis senão quando, numa simples brincadeira, o anão gigante, me traz novamente o nome de Teresa Veiga à vontade. o excerto viciou-me, o livro estava esgotado, varri a internet, encontrei um exemplar como novo, a metade do preço, tive sorte. tenho uma predilecção pelo conto, contrariamente aos puristas, não o considero menor, tão-pouco básico, mas uma narração delimitada, onde a fartura de histórias circulares e personagens secundárias do romance, dá lugar à riqueza dos pormenores, à concentração do prazer, dentro da sua estrutura fechada. a História da Bela Fria pode muito bem ter sido um dos melhores livros de contos que li em 2015.


*Eça de Queirós, Correspondência


Amor X

Amor IX

-- Porque não colas etiquetas nos teus livros? - perguntou depois de ter percorrido com o olhar a minha biblioteca.
-- Para quê?
-- Ora, para todos os livros terem o seu número... E eu, onde hei-de pôr os meus? Também tenho livros.
-- Que livros tens tu? - perguntei-lhe.
Alexandra levantou a sobrancelhas, reflectiu e disse:
-- ...De todos os géneros...
E se eu tivesse tido a ideia de lhe perguntar quais eram os seus pensamentos, as suas convicções, os seus objectivos, ela teria certamente levantado do mesmo modo as sobrancelhas, reflectido, e dito "De todos os géneros..."

Acompanhei-a em seguida a casa e deixei-a como um verdadeiro noivo reconhecido, tal como eu julgava ser até nos casarmos. Se o leitor me permite julgar o caso unicamente pela minha experiência pessoal, posso assegurar-lhe que a condição de noivo é muito aborrecida, mais ainda do que a de marido ou a de quem não é absolutamente nada. Um noivo não é carne nem peixe: deixou uma das margens, mas ainda não chegou à outra; não é casado, mas não pode dizer que seja solteiro, tem qualquer coisa do porteiro a quem já fiz alusão.
(...)

Amor, Anton Tchekhov


«Origem dos sonhos esquecidos»

Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância  dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo


12.12.15

anoitecer ii




Kandahar





«escrevo cavo e escavo na cave desta página atiro o branco sobre o branco em busca de um rosto ou folha ou de um corpo intacto a figura de um grito ou às vezes simplesmente uma pedra»

Rachel Dein


Amor IX


Alexandra escutava-me atentamente, mas em breve li a distracção no seu rosto: não compreendia. O futuro de que eu lhe falava interessava-a unicamente pelo seu aspecto exterior e era uma pura perda de tempo estar a desenvolver à sua frente, planos e projectos. O que a interessava vivamente era onde seria o seu quarto, que papel teria nas paredes e a razão por que eu tinha um piano vertical e não um de cauda. Examinava atentamente os objectos que estavam em cima da mesa, as fotografias, cheirava os frascos, descolava dos sobrescritos os selos usados, que com certeza para alguma coisa lhe serviriam.
--Guarda-me os selos usados, peço-te, - disse ela muito séria. - Peço-te.
Depois encontrou uma noz, quebrou-a ruidosamente com os dentes e comeu-a.
(...)

Amor, Anton Tchekhov

Amor VIII

Amor VII

Do jardim, levei Alexandra a minha casa. A presença da mulher adorada na casa de um celibatário, actua como a música e o vinho. Em geral, começa-se a falar do futuro com uma suficiência e um presunção sem limites. Fazem-se projectos, planos, fala-se com calor da subida ao generalato, mesmo quando se é simples aspirante, em suma, dizem-se parvoíces tão eloquentes que é necessário que a interlocutora esteja muito apaixonada e ignore tudo da vida, para acenar afirmativamente.
Felizmente para os homens, as mulheres apaixonadas estão sempre cegas pelo amor e não conhecem nada da vida. Não contentes de aprovar com a cabeça, empalidecem, aterrorizadas, enchem-se de veneração e bebem com avidez todas as palavras do maníaco. 
(...)  

Amor, Anton Tchekhov

É esta insatisfação, lava ardente, suco, sémen, semente, esta inconstância só minha, que aqui me traz, quando a vida está lá fora, longe, lenta. Sonho com uma morte violenta, a quente, bala na têmpora, carro despistado, cara desfeita em contra-mão. Sonho com o vidro que me há-de perfurar a pele macia, quente, fêmea pronta em cio, cadela em ladeira esquecida, macho alfa de alcateia, sonho-me liberta de mim.







11.12.15

Amor VII

Amor VI

O que interessava Alexandra era menos ele [o pormenor, eu] do que o lado romanesco do encontro, o seu mistério, os beijos, o silêncio das árvores austeras, os meus juramentos... Nem por um momento se abandonou, desfaleceu, despiu a sua expressão de mistério. Se no meu lugar estivesse um Ivan Sidorytch ou um Sidor Ivanytch, ela ter-se-ia sentido igualmente bem. Como querem que em tais condições um homem saiba se é amado? E, em caso afirmativo, sê-lo-á de vez?
(...)

Amor, Anton Tchekhov

8.12.15

«O que passou, passou?»

Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria
e todo o mundo ia renascer.

Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.

Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.

Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer,
tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.

Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
e virar fotografia?

Ningém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.

Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.


7.12.15

Mes amies, c'est ça votre solution?

daqui

...


Chema Madoz


*poema belíssimo de Teresa Borges do Canto

6.12.15

No Caminho, com Maiakóvski

(...)
Na primeira noite eles se aproximam
e colhem uma flor
de nosso jardim
e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: 
pisam as flores,
matam nosso cão
e não dizemos nada.
Até que um dia
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a lua e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada,
já não podemos dizer nada.
(...)

Eduardo Alves da Costa in O Tocador de Atabaque


«Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros.»


Hasegawa Tohaku



Li Shan



Zhu Daoping


Astérion

(...)
De nove em nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço os seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para os receber. A cerimónia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir umas galerias das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles, à hora da morte, profetizou que um dia chegaria o meu redentor. Desde então não me custa a solidão, porque sei que é vivo o meu redentor e por fim se há de levantar acima da poeira. Se o meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu daria pelos seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será o meu redentor?, pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? 

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava nem um vestígio de sangue.

 – Acreditarás, Ariadna? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu.

A Marta Mosquera Eastman

Jorge Luis Borges, «A casa de Astérion», in O Aleph, QUETZAL


5.12.15

Piccolino, meu pequeno, que nasceste tão velho, como todos os anões.

Fiquei ali nu, desarmado, sem mais poder do que espumar de raiva. E a alguns passos de mim, impassível, ele pôs-se a estudar-me, a observar a minha deformidade com uma frieza implacável. Vi-me entregue sem defesa ao seu olhar cínico, que se apoderava da minha pessoa como se eu pudesse ser propriedade sua. Ser assim exposto aos olhos de outrem pareceu-me de um tão grande aviltamento, que ainda sinto a vergonha de o ter suportado. Recorda-me sempre o ruído que fazia no papel o seu lápis de prata, o mesmo talvez com que ele desenha as cabeças dissecadas dos criminosos e tantas outras abomináveis coisas. O seu olhar estava transformado, penetrante como a ponta duma faca, e dir-se-ia que ele me atravessava. 
Nunca odiei tanto os homens como nessa hora horrível. O meu ódio exerceu uma tal acção em mim que me julguei prestes a desmaiar. Por momentos, tudo escureceu diante dos meus olhos.

O Anão  - Pär Lagerkvist - Antígona Editora

4.12.15

Amor VI

Amor V

Entre as quatro e as cinco da tarde, fui ao recanto mais afastado do jardim público. Não se via vivalma e o encontro podia na verdade ter sido marcado mais perto, nas alamedas ou nos caramanchões. As mulheres, porém, gostam dos romances completos: se lhes dão mel, comem-no à colherada, se lhes propõem um encontro é preciso que ele se efectue no mais denso e impenetrável dos jardins, onde as pessoas se arriscam a dar com algum gatuno ou com algum burguês de grão na asa.
Quando me aproximei de Alexandra, estava ela de costas e achei um mistério danado essas costas voltadas. Dir-se-ia que as costas, a nuca e as manchas pretas do vestido, diziam: silêncio! A rapariga estava com um vestido de chita indiana, muito simples, sobre o qual pusera uma leve capa.
Para aumentar ao mistério, tinha o rosto escondido com um veuzinho branco. A fim de não estragar a harmonia, tive de me aproximar em bicos de pés e começar a falar a meia voz.
Segundo hoje me parece, eu não era o essencial nesse encontro, mas um simples pormenor. (...)

Amor, Anton Tchekhov


3.12.15

«Quapropter et ego non parcam ori meo loquar in tribulatione spiritus mei confabulabor cum amaritudine animae meae»

a voz é de Teresa Salgueiro.


[a culpa é do JM e da Miss Smile, que me recordaram de Zbigniew Preisner]


«Procura e não procures. Não existe um centro/ mas a clareira por vezes/ de súbito retém-nos.»


 Peter Sköld, Five Trees

Amor V

Amor (IV)

Naquela letra grande mas cuidada, eu via o andar de Alexandra, a sua maneira de levantar as sobrancelhas quando ria, o movimento dos seus lábios... Mas o conteudo da carta não me satisfez. Em primeiro lugar não se responde assim a uma missiva poética; em segundo lugar, para quê ir a casa da Alexandra e ficar à espera de que a sua gorda mãe, os irmãozinhos e os comensais da casa, adivinhem que nos devem deixar sós? Talvez mesmo sejam incapazes de adivinhar que não pode haver nada mais odioso do que refrear o nosso entusiamo só porque está plantado ao nosso lado um objecto qualquer, do género velha meio surda ou garota perguntadora. Entreguei à criada uma resposta em que propunha a Alexandra escolher como local de encontro um jardim ou uma avenida. A minha proposta foi aceite de boa vontade. Eu tinha acertado, como se costuma dizer, em cheio.
(...) 

Amor, Anton Tchekhov

2.12.15

«abandonar a aldeia o lugar a casa o corpo a escrita e todas as paisagens viajar no comboio-correio da noite»


Cheryl Tarrant



o meu contributo para a época que se aproxima

o néctar da Flor

- 1 garrafa (750 ml) de vinho tinto (nada de zurrapa!)
- 350 ml de água
- 300 g de açúcar mascavado
- sumo de 2 laranjas
- sumo de 1 limão
- 2 paus de canela
- 4 cravos-da-índia

Numa panela, misture a água, o açúcar mascavado, os cravos-da-índia e os paus de canela. Quando a água começar a ferver, tire a panela do fogão e misture o vinho com muito carinho, o sumo do limão e o sumo das duas laranjas. Coloque o preparado novamente no fogão, mas apenas (atenção a este detalhe, ou ficamos com uma bebidinha para crianças!) para que o vinho aqueça, não o deixando ferver, ou lá se vai o álcool. No fim, retiram-se os paus de canela, junta-se alguma treta, tipo cascas/fatias de citrinos, passas ou amêndoa laminada, ou mantém-se simples e bebe-se com muita (boa) vontade.
Há quem junte anis, baunilha, rum, maçãs aos cubos, cuspidelas ou gengibre. Eu prefiro a coisa mais simples.

imagem roubada da net

[a felicidade natalícia será facilmente atingida, mantendo o ritmo diário de uma panela]