Foi ferido e mutilado pelos turcos. Foi assaltado pelos piratas e açoitado pelos mouros. Foi excomungado pelos padres. Esteve preso em Argel e em Castro del Rio. Agora está preso em Sevilha.
Sentado no chão, junto da cama de pedra, duvida. Molha a pena no tinteiro e duvida, os olhos fixos na luz da vela, a mão útil quieta no ar.
Valerá a pena insistir? Ainda lhe dói a resposta do rei Filipe, quando pela segunda vez lhe pediu emprego na América: procure por aqui em que se lhe faça mercê. As coisas mudaram desde então, mudaram para pior. Antes teve, ao menos, a esperança de uma resposta. De algum tempo para cá, o rei de negras roupas, ausente do mundo, não fala senão com os seus próprios fantasmas entre os muros do Escorial.
Miguel de Cervantes, sozinho na sua cela, não escreve ao rei. Não pede nenhum cargo vacante nas Índias. Sobre a folha em branco, começa a contar as desventuras de um poeta errante, fidalgo dos de lança em estaleiro, escudo antigo, rocinante fraco e galgo corredor.
Soam tristes ruídos no cárcere. Não os ouve.
Memórias do Fogo: Os Nascimentos, Eduardo Galeano, Livros de Areia Editores [tradutor: António Marques]