«É melhor começarmos lá de trás e por Dominique Isaline Zelia
Henriette Clarisse Schlumberger, protagonista de uma dessas
histórias extraordinárias apenas possíveis na Europa do século
passado.
O pai Conrad era um físico, professor em Paris na École de Mines,
que no início dos anos 20, em colaboração com o irmão engenheiro
Marcel, idealizou um sistema à época completamente inovador para
a extração dos metais e dos gases contidos no subsolo.
Fundada a sua sociedade, os irmãos andarão num afã a dar a
volta ao mundo inteiro, naturalmente bastante bem retribuídos
pelo seu trabalho, sem nunca esquecerem a vocação para a investigação, tanto assim é que a Sociedade Europeia de Exploração
Geofísica instituirá um prémio com o seu nome.
A sua filha Dominique licenciar‑se‑á em matemática para
depois se interessar pelo cinema, descobrimo‑la em Berlim como
assistente de Joseph von Sternberg durante a filmagem de O anjo
azul. Em 1930, encontrará e casará com o banqueiro Jean de Menil.
Durante a ocupação nazi de Paris, a família emigrará para os
Estados Unidos, onde o pai e o tio darão continuidade à sua sociedade de extração (sobretudo petrolífera, a sede ficará obviamente
no Texas), enquanto Dominique e Jean, agora John, começarão a
reunir uma extraordinária coleção de arte moderna, que chegará
a ser constituída por cerca de dezassete mil obras entre quadros,
estátuas, fotografias e objetos de vários géneros.
Os dois valer‑se‑ão sempre de um forte empenho social e ético,
colaborando com importantes expoentes da batalha pela integração e pelo reconhecimento dos direitos civis, ao ponto de serem
promotores das primeiras mostras de arte inter‑raciais nos Estados
Unidos e de fazerem ouvir a sua voz inclusivamente fora do seu
país de adoção.
Em 1964, encomendarão ao pintor Mark Rothko as decorações
de uma capela a ser erguida em Houston.
Embora os De Menil fossem católicos praticantes, o edifício
não terá nenhum fim confessional, é antes concebido como local onde qualquer pessoa, independentemente da fé professada ou
abjurada, possa encontrar espaço para a meditação, a oração e a
contemplação.
A construção arrasta‑se por muito tempo, só será aliás terminada em 1971. Rothko não chegará a ver os seus trabalhos nas
paredes, pois, abatido por uma longa depressão, porá termo à vida
poucos meses antes.
Para a inauguração da Rothko Chapel será encomendada uma
peça a Morton Feldman.
Com quase dois metros de altura, corpulento, o olhar perspicaz
por trás das grossas lentes de míope, Feldman sempre cultivara
uma relação muito estreita entre a sua música e as artes figurativas, para além de que tinha sido um bom amigo do pintor desaparecido, vinte anos mais velho.
Personalidade inteiramente laica, dotado de um péssimo caráter e de um humor cáustico, é aparentemente alheio a qualquer
possível suspeita de misticismo.
Como quase todos os compositores da sua geração, dera por si
a escrever música quando o panorama parecia suspenso entre as
lisonjas do acaso e os rigores do estruturalismo, mas ele, espírito
demasiado livre para o segundo embora ainda assim desejoso de
ter controlo sobre a matéria sonora de uma forma bem mais rigorosa do que teria sido possível abraçando a música estocástica,
acabará por avançar pela música do século passado com um passo
solene e completamente especial; ao ouvirmos as suas composições, temos por vezes a ilusão de a música ter sido uma descoberta
sua, como se tivesse sido ele o primeiro a pôr a hipótese de os
sons poderem ser pensados, organizados de certa forma e depois
emitidos por um qualquer aparelho inventado para tal fim.
A peça em questão supõe um pequeno número de executantes,
flauta, celestino, coro misto, percussões e viola. As dinâmicas vão
do pianissimo, literalmente no limite do audível, a momentos de
maior concitação, embora privilegiando dinâmicas que se viram
para o silêncio, a escansão rítmica é quase impercetível e só
de maneira a que se consiga apreender com o ouvido um arco de tempo suficientemente longo (algo de semelhante acontece ao
ouvirmos a música gagaku japonesa). É um organismo que parece
feito de vazio ao mesmo tempo que pulsa iridescente, as transparências de Feldman têm corpo e peso, uma espécie de milagre que
nos obriga a rever aquilo que pensamos erradamente acerca da
música moderna.
Poderia ser suficiente, mas para o final da peça, que dura cerca de
vinte minutos, o vibrafone conquista um ritmo regular e quase vivace
sobre o qual se emancipa a viola para cantar uma melodia hebraica
de absoluta e transcendente beleza. Uma epifania; a porta da casa em
que estamos encerrados a abrir‑se para o mundo exterior.»