29.9.20

subterrâneo


Giuseppe Licari, Humus

As Cidades e os Mortos. 4.

O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As ruas estão completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens. Se os habitantes poderão andar pela cidade alargando os cunículos dos vermes e as fendas em que se insinuam as raízes, não o sabemos: a humidade quebra os corpos e deixa-lhes poucas forças; convém que fiquem quietos e deitados, de tão escura que é.

De Árgia, cá de cima, não se vê nada; há quem diga: "É lá em baixo" e só nos resta acreditar; os lugares são desertos. De noite, encostando o ouvido ao chão, às vezes ouve-se bater uma porta.


As Cidades Invisíveis, Italo Calvino 


28.9.20

a máscara ou o martelo

Stasys Eidrigevičius

 


o martelo

o papa quando morre

leva uma

marteladinha

na testa eu nunca

martelei

ninguém

nem papa nem príncipe nem rei

quando a procissão

tem que seguir

o capataz dá três

marteladas

no andor e os

costaleiros seguem

martelo

é um decassílabo heroico

com tônicas nas posições

três seis e dez quando

o atleta termina o

molinete três voltinhas

em torno de si mesmo

pode lançar o

martelo

que pesa sete kilos

duzentos e sessenta gramas

marx nunca falou sobre

martelo

algum quem já viu

escola de pensamento ter

símbolo qual seria o símbolo

da escola de frankfurt se

adorno tivesse escolhido um?

quando thor bate seu

martelo

é sinal de chuva e trovão

mas é a flor do mandacaru

que anuncia chuva no

sertão para o tubarão-martelo o

martelo

funciona como uma asa

estabilizando seus

movimentos além disso

o ritual de acasalamento

dos tubarões-martelo

é muito violento

na bandeira da albânia

comunista substituíram o

martelo

por um fuzil o

martelo

é um objeto ótimo

que serve pra dormir bem

ou pregar pregos.


Adelaide Ivànova, O martelo, 2017


27.9.20

quem disse que os poetas não podiam ser atraentes?

 

Ezra Pound sitting in car, 1930


You can spot the bad critic when he starts by discussinq the poet and not the poem.


O Viajante no Tempo

 

A Máquina do Tempo, H. G. Wells

15.9.20

Os anjos do corpo


Meu infatigável

anjo,

da guarda de meu corpo

São os anjos quem
guardam
os orgasmos

Pastores

Dos rebanhos
– dos ardores
Dos odores do corpo

Hei-de confessar-te
um dia
o meu desejo:

um anjo

que me acaricie devagar o clitóris
as pernas entreabertas
ao meu beijo

Quantas vezes te digo
que te dispo
e depois te lambo

primeiros as asas
e o pénis

e em seguida: o ânus

E o anjo
debaixo
ficou a acariciar o pénis
do anjo que voava
por cima

de manso procurando
o fundo
da vagina

Sou eu que te transformo
de prazer
em anjo do orgasmo

infatigável
suco
da língua

Naquilo que te faço

Com o teu clitóris
de ouro,
és o anjo

mamilos à flor da pele
que tapas com as asas

Os anjos descobrem
a vulva
no mesmo instante

em que sabem
do pénis:

com
as pernas ligeiramente
abertas
e desviando as asas

Despir os anjos
um por um

passando-lhes a língua...

lentamente,
pelo sal do pénis
Sorvendo-lhes em seguida
os sucos da vagina

Penteio com os dedos
os cabelos
deste arcanjo

respirando baixo
o interior macio
das suas pernas

o púbis
deste anjo

O sabor do esperma
dos anjos que imaginam

a-mar

as águas
uterinas

Lambe-me devagar
o céu da boca

como se a voasses

É um púbis de anjo
com pequenas asas

sob:
sobre a doce matiz
matriz
do clitóris

Viro-te anjo
debaixo do meu corpo

cubro-te:
voando – vogando
pelo nada

o teu pénis
direito
no meu púbis

e mais abaixo
a tua vagina alada

Adormeço de ventre
em tuas
asas

deitada ao comprido
no espaço
das tuas pernas

pernas

Cisterna
posta à beira
da sede dos teus braços

Primeiro roço-te
as asas
suspensas pelos teus ombros

imaginando apenas

aquilo que depois
mergulho
e faço:

Traz o anjo
o arrepio
ao corpo todo

um aperto nos
seios
e na vagina

Uma febre incerta
que vagueia
nas asas, nas coxas
e nas veias

Tinha um corpo de
lua
pelo lado da cor e do frio

em desiquilibrio no fio da faca
do orgasmo

O teu corpo,
neste envolvimento
de voo

e de vulva

Meu amor que mergulhas
de vertigem:

Anjo expectante
da vagina

A mistura de mim
com o teu corpo

asas pequenas que estremecem
debaixo do desejo

Não tens noção
de quanto é corpo o corpo
nem desejo

Anjo

Voando sobre
o que é baixo

Sob

Voando sob
o que é por baixo

Tocar-te apenas com
a língua
a cabeça do pénis

como se devagar
lambesse
o meu clitóris

até sentir o orgasmo
trepar-me pelas pernas

Bebem os anjos
a saliva
dos anjos

Pela taça
– exposta –
da vagina

São raríssimas as
asas
que não partem dos seios

a florir nos
ombros

Como um manso púbis
com os seios veios
de sombra

Quando
o clitóris toca
o clitóris dos anjos...

Lambe-me as asas
– disse o anjo
ao anjo mais perto...

dos seus pulsos