[tenho de fazer batota e saltar umas linhas, que daqui a pouco é hora de almoço e ainda tenho de ir fazer as filhós. como antigamente, a minha mãe, delicada, estica-as suavemente na palma da mão, para depois as lançar com jeitinho na panela de óleo a ferver, e eu, endiabrada, espeto-lhes a colher de pau no bandulho, para lhes dar a concavidade.]
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Os meses a seguir ao Natal eram a altura mais feliz da vida da Avó. De bem consigo mesma, agradecida, com os filhos em casa sãos e salvos, sentava-se ao canto da lareira, na grande sala de madeira da família. O vento podia uivar, a neve podia amontoar-se lá fora cada vez mais, que nada disso a preocupava, pois a sua família e toda a aldeia estavam bem abastecidas de farinha, petróleo, lenha, carne, ervas medicinais e raízes. As crianças tinham os seus livros e brinquedos, aprendiam as suas lições com o velho padre, faziam teares e rocas de fiar ou esculpiam bancos e cadeiras e arcas com as ferramentas que os tios lhe tinham trazido. Os tios descansavam e contavam histórias das suas viagens; o Tio Mark tocava a sua flauta horas a fio, o Tio Acraud fazia desenhos a carvão dos locais que tinha visitado e a Avó, passando os dedos pelo papel repleto de linhas, ia explicando os desenhos enquanto tio Mark tocava:
--Uma grande cordilheira, como linhas castanhas e enrugadas na linha do horizonte; uma vasta planície de loira areia prateada, com áreas de um azul muito, muito pálido; não me parece que seja água. Aqui há linhas estranhas pela areia, onde os homens outrora lavraram muito há muito, muito tempo; e uma grande mancha verde cristalino, atravessada por aquilo que parece ser uma estrada. E aqui há uma pequena região tom de ameixa, encostada a uma área vermelho ferrugem. Acho que são as cores da terra nestas paragens; ficam situadas muito alto nas montanhas, em zonas de grande secura devido à altitude e o solo brilha com pequenas partículas de metal.
--A Mãe descreveu-o melhor do que eu próprio alguma vez o conseguiria fazer! - exclamava o Tio Acraud, enquanto as crianças, sustendo a respiração, tal o fascínio e a curiosidade, se sentavam de pernas cruzadas à volta da sua cadeira.
--Sim, mas não o consigo ver, de todo, Acraud, a não ser que os teus olhos o tenham visto primeiro, e não o consigo ver sem a música do Mark para me ajudar.
--Como é que a Avó consegue ver? - perguntavam as crianças às mães, e Argilla, Grippa e Tassy respondiam:
--Ninguém sabe. É um dom da Avó. Só ela o consegue.
(cont.)
[é bonito, não é?]