Alberto, meu primo, bateu na porta. Abri. Ele estava branco e disse: aconteceu uma coisa horrível, ligaram lá pra casa. Eu sentei. Ele explicou: o carro capotou. Um vapor tomou meu peito e logo em seguida um gelo absurdo pareceu-me pausar os batimentos. Fiquei um pouco surdo. Olhei fundo para seus olhos afogueados. Ele só balançou a cabeça e disse: ninguém. Num acesso, arranquei o telefone com fio e tudo. Depois coloquei no lugar. Ele tentou me segurar e eu fiz sinal de silêncio. Corri para o quarto e desliguei o celular. Tudo era câmera lenta, pesadelo com serpentes. Alberto perguntou onde estava a mãe. Eu disse que no jardim dos fundos tratando as flores. Ele perguntou se eu queria que chamasse o padre. Eu disse que não. Que ficasse feito um pastor alemão na porta e não deixasse ninguém entrar. Ninguém. Eu me incumbiria de dar a notícia. Empurrei-o para o portão da frente. Tranquei as portas e janelas. E fui para os fundos da casa. Lá estava ela. Cabelos algodão. Sorrindo para os pés de brincos de princesa e retirando as ervas daninhas com suas mãos delicadas. Numa paz sem-par.
A mãe que perde um filho, se não for firme, perde também a razão.
Fiquei do basculante tremendo e com medo que ela olhasse pra mim. Ela falava sozinha. Talvez conversasse com as plantas. Sorria continuamente.
Uma senhora quando perde a nora amada, se não for sensata, perde também o rumo da pouca vida que lhe resta.
O dia era de julho e o sol morno a fez tirar o chapéu de palha e jogá-lo ao seu lado. Ela olhou para o astro. E sorriu. Ficou assim por uns cinco minutos. E eu tinha que ser o terrível mensageiro; eu de nome angelical. Entrar naquele ato e destruir o final feliz. Dei dois passos em direção à porta dos fundos e me urinei todo. Meu corpo entrara em colapso.
Uma avó que perde três netos, possivelmente perde a fé em qualquer santo, em qualquer deus.
Ela estava sentada no chão feito criança que brinca no barro. Sequei o assoalho. Corri até o quarto e troquei a bermuda. Minha carne tremia descontroladamente. Alberto socou a porta. Mandei que parasse. Ele disse que os vizinhos queriam saber de coisas. Exigi que dissesse a eles que eu precisava de mais um tempo. Que se calassem também.
Uma morte é um despropósito. Cinco, uma aberração.
Ela estava radiante de feliz. E eu faria qualquer coisa para que aquele sorriso durasse mais um, quinze, trinta minutos que fossem. Que fossem os últimos trinta minutos de felicidade de sua vida. Nunca mais eu teria a oportunidade de vê-la assim: serena. Tratando de seu jardim. Ela mirou a porta da cozinha e subitamente desfez o sorriso. Ficou olhando-me tensa com uma interrogação de: ‘tudo bem? Apesar desta tua cara de espanto e horror…’. Desci as escadas lentamente. Cada minuto a mais de uma dor só minha era uma eternidade de alegria no pouco tempo que lhe restava. E ela se levantou, limpou as mãos barrentas no avental. Pegou o grande chapéu de palha e saiu me puxando para o orquidário. Sentou-se. Segurou minha mão e pediu que eu me sentasse também. Perguntou-me o que me afligia. Disse que nada grave. Então ela me pediu para ajudar a retirar as folhas secas e alguns fungos de suas mil orquídeas. Assim o fiz. Alguém arranjaria um jeito de arrombar a porta. De vir gritando. De pular o muro. De chamar um chaveiro.
E eu a todo momento engolindo o horror. Mas o tempo de paz, este eu esticaria e daria a ela ainda que custasse uma eternidade para meus olhos que ansiavam virar mar.
Fado, Angelo Pessoa