21.3.18

Uma faca só lâmina

Uma faca só lâmina

Assim como uma bala

enterrada no corpo,

fazendo mais espesso

um dos lados do morto;

assim como uma bala

do chumbo mais pesado,

no músculo de um homem

pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse

um vivo mecanismo,

bala que possuísse

um coração ativo

igual ao de um relógio

submerso em algum corpo,

ao de um relógio vivo

e também revoltoso,

relógio que tivesse

o gume de uma faca

e toda a impiedade

de lâmina azulada;

assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia;

qual uma faca íntima

ou faca de uso interno,

habitando num corpo

como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,

e sempre, doloroso

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.

Seja bala, relógio,

ou a lâmina colérica,

é contudo uma ausência

o que esse homem leva.

Mas o que não está

nele está como bala:

tem o ferro do chumbo,

mesma fibra compacta.

Isso que não está

nele é como um relógio

pulsando em sua gaiola,

sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está

nele está como a ciosa

presença de uma faca,

de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica

aquela ausência sôfrega

que a imagem de uma faca

reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca

entregue inteiramente

à fome pelas coisas

que nas facas se sente.


/João Cabral de Melo Neto/