Caspar David Friedrich |
29.9.15
27.9.15
26.9.15
os ninguéns
As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
[Eduardo Galeano, O livro dos abraços]
7
Invariavelmente, logo na primeira noite do primeiro dia de temporada de ausência comercial do condómino caixeiro-viajante, chegava o seu substituto e era-me impossível dormir, pelo menos até o escape do carro lhe estrondear o gasóleo mal queimado da retirada, porque o quarto das cópulas era mesmo por cima do meu e as ilegítimas deveras mais barulhentas.
«Ah, o susto que apanhei certa vez, a despensa abastecida e arrumada, o saco do lixo na mão - e eu, que competia comigo próprio pelo expediente mais silencioso, saindo na paz das desoras com o excesso de confiança dos bem sucedidos, a porta já fechada atrás de mim (uma obra de arte, havias de ouvir embora o ponto tenha sido exactamente a inaudibilidade), quando ouço ao descuido a do andar de cima a abrir, a luz das escadas acesa e imediatamente os passos descendo, expeditos, tarde demais para voltar a entrar e tarde demais para me pôr a descer à bruta, o homem a ver-me, parado a olhar para mim e eu feito pedra a olhar para ele, depois o sorriso lambão do que acabou de comer para o que julga ter acabado de comer também, o cheiro nauseabundo de um resto de colónia barata naufragado nos humores fortes da cópula, piscando-me o olho, dando-me passagem, e eu a custo reaprendendo a andar, pensando em cada degrau, o homem ainda de respiração funda do esforço fresco atrás de mim, eu abrindo a porta da rua e segurando-a cavalheiro para que ele saísse, Obrigado, apontando para a carrinha e perguntando se queria uma boleia, Não vale a pena, não vale a pena; moro aqui perto, até ao alívio da esquina dobrada, agora o gozo de estar fora da vista e os gestos espontâneos dos passos voltando a mim enquanto o homem de resistência quente começava a dar ao arranque, o gorgolejo macabro de tanto gasóleo em cilindros velhos, explodindo, explodindo pela madrugada fria e o que eu me ri, de mim para mim uma carrinha amarela e velha, a mais absurda ferramenta para a discrição do amante ilícito visitador. Mas com o moralismo fácil que corre por estes condomínios, ninguém alardeava escândalo?»
Imoral, mesmo imoral, só aquilo que afecta e descaracteriza a rotina, enfim, a originalidade que incomoda a mecânica relojeira da repetição dos eventos - e que só não é mais nefasta porque a rotina defende-se sendo um bicho voraz, super-omnívoro, que come e digere tudo o que lhe apareça à boca ou à distância da língua, ainda que nojento: comeu, naturalmente, o exercício amoroso da condómina esposa do condómino caixeiro-viajante e do amante de modo que, quando eu me mudei para o apartamento, já eles não eram novidade para ninguém; e não só os comeu e digeriu como os defecou e fez adubo e todo o condomínio passou a acertar a libido pela deles, espectáculo tão pouco diferente, debalde a diferença de décadas, do da minha rua da infância, os conterrâneos em noite de janela pela brisa fresca após o dia forte de estio vendo sair o conterrâneo adúltero, eles para elas e elas para eles Lá vai ele ter com a outra, toda a rua fedendo a colónia, eles machamente nostálgicos vendo a potência sumir-se nos farolins do carro curvando o cruzamento e elas espojadas descalças no sofá feio da sala como se fosse vermelho e o esperassem, o azul da televisão quase sem som e os condóminos do rés-do-chão que fingiam dormir acordando à chegada da carrinha, o apagamento do motor uma explosão como outra qualquer e o amante estrangeiro semi-condómino Sou eu no intercomunicador, ela sem voz de resposta abrindo a porta, Lá vai ele ter com ela e os bigodes húmidos preambulando o minete, Já deve estar de perna aberta, Não digas isso, malcriado, cócegas na barriga e beliscões marotos avivando a carne dormente de tanto tempo detergente, os condóminos esposos do rés-do-chão pondo-se agora em cima das respectivas condóminas esposas do rés-do-chão, funcionários bombando síncronos à esquerda e à direita, as bocas deles e delas abrindo e fechando como peixes vivos na lota até ao despejo dos dois sacos regulares, lubricidade que continuava à solta pelo dia seguinte, outro ânimo no trânsito das escadas, ditos brejeiros nos cumprimentos e em tarde de limpeza era ver os condóminos esposos do rés-do-chão entre o fim do almoço e o regresso aos serviços subindo à vez como quem precisa de ir às águas-furtadas só para se roçarem na Muda à passagem, apalparem-lhe o cu ou as mamas, o cu e as mamas, amiúde o tabefe da honra onde liam consentimento, e a excitação acrescida pela falta de voz para delatar.
Às vezes pensava como vivia o meu amor as cópulas do segundo esquerdo: masturbar-se-ia?
(...)
[O Condómino, António Gregório, p. 39, 40, 41]
25.9.15
onde se lê verborreia, leia-se, a puta da inveja que morde os testículos dos fodilhões com manias de génio que almejaram ser e descobriram que nunca o serão.
deixei Lobo Antunes de lado muito antes de lhe conhecer a verborreia de crítico literário. aborrecia-me de morte.
(…)
-No entiendo por qué volviste.
Y retira la mano. La mano de Mariano queda sola sobre la mesa, con la palma vuelta hacia arriba. Tiene la línea de la vida larga pero muy tajeada.
-No entiendo. Me habías dicho: “No nos vamos a ver más. Somos libres”. Yo me quedé muda mirándote la espalda y te perdiste en la esquina de la estación. ¿Qué esperabas? ¿Que te corriera atrás? ¿Que te llamara a gritos? ¿Para qué quería yo esa libertad que me regalabas? ¿Para qué la quería?
(Mariano escuchaba los ecos de sus propios pasos y llevaba la cabeza vacía por dolorosa victoria de la voluntad, pero al llegar a la estación del ferrocarril se le metió por los oídos el estrépito de la máquina aproximándose, y entonces supo que desde ahora le harían falta los navegantes misteriosos que tan a menudo se perdían, por puro gusto, en los desfiladeros de niebla de la memoria o la imaginación de esta muchacha. Trepó por los peldaños de fierro y supo que ella sería, desde ahora, una nuca entrevista en la muchedumbre o un perfil que se escapa, una voz adivinada entre otras voces. Que él se daría vuelta bruscamente y echaría a correr y tomaría a una mujer por el brazo: que se equivocaría siempre. Entró al vagón de pasajeros y se sentó en uno de los viejos asientos de paja de la época de los ingleses y supo que ella persistiría: escuchó el traqueteo de las ruedas sobre los rieles y supo que ella persistiría, persistirá: en verano, en los túneles de hojas, convertida en un sanantonio que te camina por el brazo, o en las noches de julio, llenando una silla vacía en la complicidad humosa de los cafés. Llegó a destino y se bajó, mareado, y seguía sabiendo que ella continuaría oliendo a sí misma en su memoria, deambulando desnuda por la región nochera de sus sueños: que ella sería, que será, una cicatriz que a veces hace cosquillas y a veces late y a veces arde y a veces duele. Y sintió la necesidad de volver y por lo menos decir: “Nunca nada”. Por lo menos decir: “Como esto, nunca nada”. Y no volvió.)
- Clara.
- Sí.
(…)
[Eduardo Galeano - La Canción de Nosotros]
24.9.15
22.9.15
in this moment
When you've kissed an angel and held her 'til she breaks
Tell me now what's more real than this moment
Dente por Dente
Outros antes de nós tentaram o mesmo esforço: dente por
dente: não, nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escar-
late, o vómito nos pulsos por cada noite roubada; nem um
minuto para a glória da pele. Despertar de lado: olho por
olho: conservar a família em respeito, a esperança à distância
de todas as fomes, o corno de cada dia nos intestinos. Aos
dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e
do amor, os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no
festival das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a
saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo
menos doentes exemplares.
Fora do meu reino toda a pobreza, toda a ascese que gane
aos artelhos dos que rangem os dentes; no meu reino apenas
palavras provisórias, ódio breve e escarlate. Nem um gesto de
paciência: o sonho ao nível de todos os perigos. Pelo meu
relógio são horas de matar, de chamar o amor para a mesa
dos sanguinários.
Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher
a tempo a nossa morte e amá-la.
António José Forte, Uma Faca nos Dentes
dente: não, nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escar-
late, o vómito nos pulsos por cada noite roubada; nem um
minuto para a glória da pele. Despertar de lado: olho por
olho: conservar a família em respeito, a esperança à distância
de todas as fomes, o corno de cada dia nos intestinos. Aos
dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e
do amor, os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no
festival das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a
saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo
menos doentes exemplares.
Fora do meu reino toda a pobreza, toda a ascese que gane
aos artelhos dos que rangem os dentes; no meu reino apenas
palavras provisórias, ódio breve e escarlate. Nem um gesto de
paciência: o sonho ao nível de todos os perigos. Pelo meu
relógio são horas de matar, de chamar o amor para a mesa
dos sanguinários.
Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher
a tempo a nossa morte e amá-la.
António José Forte, Uma Faca nos Dentes
21.9.15
20.9.15
«A prova de vida»
(...)
Existia nesses anos uma lei ridícula que obrigava os cidadãos a pagar uma licença cara pelo privilégio de usar isqueiro, só porque o fabrico dos fósforos era monopólio do Estado. Nas cidades havia «fiscais da licença de isqueiro», que vigiavam os cafés e as esquinas, impiedosos, prontos a multar. Nas aldeias era a Guarda encarregada desse controlo, e daí nasceu a ideia de que valeria a pena pregar um susto ao Jaime, a ver se sim ou não conseguiam que falasse.
Combinaram com o cabo. Na próxima visita da patrulha chamavam à taberna o «Calado» – era a alcunha que tinha – e sem ele dar por isso metiam-lhe um isqueiro no bolso.
Fizeram-se apostas. Com o medo falaria. Ou pelo respeito à farda. Outros mantinham que não: ia ficar como sempre, a sorrir, a encolher os ombros, a boca cosida.
– Se lhe dizem que o prendem, fala, ó se fala!
– Não fala. Nunca falou, não é agora que vai falar.
– E o medo? A multa?
– O «Calado» não é de medos.
Realmente não era. Na força dos trinta, seco, musculado, se havia desastre ou perigo era ele o primeiro a acudir. Pouco antes, no incêndio de uma corte, enquanto os outros gritavam e corriam desatinados com baldes de água inúteis, ele arrombara a porta aos pontapés e, sem se importar das queimaduras ou do risco, metera-se por entre as chamas a salvar as cabras do vizinho.
Formou-se uma roda em volta dele e do soldado que o revistava – tinham-lhe dito que houvera denúncia – todos a fingir de espantados quando o isqueiro apareceu.
– A licença? – perguntou o cabo, ríspido.
Jaime esboçou um sorriso, encolheu os ombros a mostrar que aquilo só podia ser brincadeira. Então, pobre como era, onde ia arranjar o dinheiro para um isqueiro?
– A licença? – insistiu o cabo.
Jaime teve o mesmo sorriso plácido, mas logo se retesou quando o cabo deu um passo em frente, a fazer-se furioso, e lhe segurou o braço:
– Então que temos? Falta de respeito? Hein? Falta de respeito?
E a cada palavra uma sacudidela, o corpo rígido, a palidez a aumentar, traindo a emoção. Os outros gritavam-lhe que falasse, negasse, assim que respondesse o cabo deixava-o em paz.
– Diz-lhe que não é teu.
– Mesmo que vendas a burra não te chega o dinheiro para a multa!
– Fala, sacana! Então não tens língua?
Cercavam-no aos empurrões, ele a suar, lívido, a boca escancarada, os braços paralisados. A taberna enchera-se de gente que tinha vindo ver, e os últimos a chegar, mal informados, julgavam que era a sério, mandaram que fossem avisar a mulher.
O cabo, razoável actor, demonstrava agora como se perde a paciência e, com grande autenticidade, num gesto terminante, deu-lhe voz de prisão. O Jaime arregalou os olhos, estremeceu, caiu fulminado.
(...)
in Os lindos braços da Júlia da Farmácia, José Rentes de Carvalho
Se nos picarem, não sangraremos?*
passeamos em tours pelos campos de Auschwitz ou Belzec, de lágrima no canto do olho, vemos Adrien Brody, quase cadáver, rebaixado à condição animal, fuçando no lixo, mas ainda assim, tocando piano pelas mãos de Deus. acalentamos o ímpeto bondoso que trazemos no coração, lendo Primo Levi e transcrevendo algumas passagens. somos bons, somos intrinsecamente bons, repudiamos os nazis assassinos e estamos sempre do lado dos judeus, os mais fracos. não permitiremos que algo do género se repita sob os nossos olhos, garantimos aos nossos filhos. que nenhum ser humano voltará a ser usado como objecto ou mercadoria. somos bons. melhores de que todos os outros, é isso que murmuramos quando apagamos a luz, antes de dormir. da cobardia, da malvadez, do desinteresse, que cuidem os fantasmas.
[*O Mercador de Veneza, de Shakespeare, citado no filme O Pianista]
19.9.15
Lèlito
-- Eu queria estar contigo... porque sei como és. Queria animar-te, que diabo! Mas não via maneira. Andava por aí à espreita... Quem me trouxe aqui foi o senhor Maldonado, e sem eu me atrever a pedir-lho...
Era a primeira vez que Lèlito ouvia o nome do Caveira.
-- Tens de lhe agradecer a minha visita - continuou Pedro. -- Há gente boa que gosta de parecer má... Este mundo é reinadio! Os maus é que muitas vezes gostam de se fingir bons, os tolos de parecer inteligentes, assim por diante.
Uma gota de sangue, José Régio, p. 178
[admito, nunca o teria comprado/lido, não fosse a vergonha que se me assomou, quando o livreiro correu atrás de mim, garantido-me a pérola literária, pechincha a dez euros, por ser primeira edição. faltou-me a coragem de dizer que não, por aquela altura, já pouca gente por ali passava, presumi-lhe a necessidade. às vezes fico assim, sensível ao mundo, que, sacana, se aproveita da minha fraqueza de mãe porvir. não me arrependo, não salv(ar)ei o mundo, mas é um bom livro.]
Gonçalo e Alexandra
(...)
-- Nunca te passou pela cabeça que eu, um dia, te enganasse?
Quantas vezes terei de ouvir isto durante a vida? As mulheres serão todas iguais? Nós, os homens, temos o nosso trabalho, a nossa vida, o nosso mundo. Para nós, o amor é uma de muitas coisas, como o trabalho, a política, o clube. As mulheres não fazem nada, e para elas o amor é tudo. Tudo o que têm. Atribuem-lhe um valor exagerado. Odeiam o nosso trabalho e tudo o que nos afasta delas. Ameaçam de nos retirar o amor... de nos enganar. Não percebem que sem o amor delas continuaríamos a nossa vida... Nada seria alterado. Julgam que o amor tem para nós a importância que tem para elas...
Alexandra, sem tirar os olhos de Gonçalo, insistiu:
-- Diz lá, Gonçalo, já alguma vez admitiste a hipótese de eu, um dia, te enganar?
As regras do jogo ordenam que eu responda que não, que nunca admiti a hipótese de ela me enganar. As regras do jogo ordenam que eu fale agora na confiança que tenho nela. A Alexandra é uma pega e por isso o amor não está em causa. O que se discute é a aparência do amor. É um jogo pequeno dentro dum jogo grande. Nestas circunstancias as regras do jogo são inalteráveis: «há que tratar a aparência do amor como se de amor se tratasse».
-- Que farias tu se eu te enganasse, Gonçalo?
As mulheres raras vezes percebem que os homens que se entregam inteiramente ao amor, que fazem do amor e da mulher a sua vida, são precisamente aqueles que nada têm para dar, que nem têm vida nenhuma. É por isso que as paixões poéticas duram pouco. Os grandes amorosos são homens de segunda ordem, e ao fim de certo tempo as mulheres começam a compreender que fizeram um mau negócio.
-- Nunca pensei nisso.
(...)
Angústia para o jantar, Luis de Sttau Monteiro, p. 144, 145, 146
18.9.15
Dos amigos: Irão
Montedor
Apago a lamparina e sento-me à janela a fumar, olhando o rio a perguntar-me, sem ponta por onde pegue. Ir? Mas para onde? Para quê? O mais certo é agarrar-me à loja, ficar, sem perguntas, ser pai. O sonho, as grandezas? Enterrado. Paris? Quando o sogro esticar a bota, a mulher pendurada no braço e o fedelho. Eu que me via a dar cartas, pintando o futuro, correndo o mapa! A acreditar que há mais marés que marinheiros. Tretas. A maré não vem, faz-se, questão de saber com que manhas.
Quem te prendia? Havias de ver que não te corriam à perna, de certeza contentes de se verem livres de ti. Mesmo agora, quem te pega? As lérias dele? Se fazes a trouxa e sais porta fora, julgas que te segura? Desengana-te. O mal é que não tens trouxa e não se vai pelo mundo sem ela. É como se te fechassem a cadeado, e ele sabe-o melhor que tu, à espera que venhas ao rego, que percas a tesura.
Bom fim para tanta grandeza. Lábia, lábia! Pega na caixa, seis contos e duzentos, contados diante de ti antes da ceia, e ele com medo do escândalo não se queixa. Palavreado. Há os que passam e os que vêem passar. Tu vês passar. Pior: ficas de pedra e cal atrás do balcão. De lá é que hás-de enxergar os que não são de meias medidas, nem tomam por atalhos.
[Montedor, p. 155/156]
15.9.15
Agosto de 1910
Aos 23 do mês passado morreu meu pai amachucado, exausto e pobre. Encontrão dum, repelão de outro, assim foi até à cova. Tinha 67 anos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Há muitos anos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lágrimas sem fim sobre um velho romance de Camilo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha casa abandonada...
Sobe a lua no céu, e a sombra no monte. Seis árvores, quatro paredes – tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas outras sedes se apagarão naquela água. Outros virão também sentar-se no banco de pedra... Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto... Olho para ti e os teus primeiros cabelos brancos fazem-me chorar.
[Memórias]
AOS MORTOS
PREFÁCIO
Janeiro de 1915
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões.
Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final.
[Memórias]
Aquele que Quer Morrer
A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.
Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.
O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.
[1978]
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.
Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.
O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.
[1978]
escrever?
Eu não espero para escrever, nem deixo de escrever para passar pelo exercício que produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever é o duplo de viver; poderia dar como explicação que é da mesma natureza que abrir a porta da rua, dar de comer aos animais, ou encontrar alguém que tem o lugar de sopro no meu destino.
Definição
Um corpo não é um fruto,
embora em tudo se assemelhem:
densa forma,
oculto gosto,
cinco letras
e um pressuposto
poder de vida.
Um corpo é mais que um fruto
que se plante,
que se colha
ou se degluta:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é luta.
Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos,
membros ágeis,
sal na boca
e um desejo
verde pelos campos.
Um corpo é mais que um potro
que pelos prados
e currais se dome:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é fome.
Nem chama
que se anule,
nem espada
em duplo gume
ou máquina
de estrume.
Um corpo
é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a forma,
mais que o leme,
mais que o açude.
Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.
2
O corpo é onde
é carne:
O corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.
O corpo é onde
é chama:
O corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.
O corpo é onde
é luta:
O corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.
O corpo é onde
é cal:
O corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.
O corpo
é onde
e a vida
é quando.
embora em tudo se assemelhem:
densa forma,
oculto gosto,
cinco letras
e um pressuposto
poder de vida.
Um corpo é mais que um fruto
que se plante,
que se colha
ou se degluta:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é luta.
Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos,
membros ágeis,
sal na boca
e um desejo
verde pelos campos.
Um corpo é mais que um potro
que pelos prados
e currais se dome:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é fome.
Nem chama
que se anule,
nem espada
em duplo gume
ou máquina
de estrume.
Um corpo
é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a forma,
mais que o leme,
mais que o açude.
Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.
2
O corpo é onde
é carne:
O corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.
O corpo é onde
é chama:
O corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.
O corpo é onde
é luta:
O corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.
O corpo é onde
é cal:
O corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.
O corpo
é onde
e a vida
é quando.
Notes of a dirty old man
I've seen to many intellectuals lately. I get very tired of precious intellects who must speak diamonds every time they open their mouths.
I get tired of battling for each space of air for the mind. That's why I stayed away from people for so long, and now that I am meeting people, I find that I must return to my cave.
Notes of a dirty old man, Charles Bukowski
My Own Social Media
Sir: I haven’t got a computer, but I was told about Facebook and Twitter and am trying to make friends outside Facebook and Twitter while applying the same principles.
Every day, I walk down the streets and tell passers-by what I have eaten, how I feel, what I have done the night before and what I will do for the rest of the day. I give them pictures of my wife, my daughter, my dog and me gardening and on holiday, spending time by the pool. I also listen to their conversations, tell them I ‘like’ them and give them my opinion on every subject that interest me…whether it interests them or not.
And it works. I have four people following me; two police officers, a social worker and a psychiatrist.
– Peter White, Holbrook, Derbyshire
11.9.15
Famas, Cronópios e Esperanças
Quando os famas vão de viagem, têm por costume, ao pernoitar numa cidade, fazer o seguinte: o primeiro fama chega ao hotel e cautelosamente pergunta os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo vai à esquadra da polícia e lavra uma acta declarando móveis e imóveis dos três, assim como o inventário do conteúdo de suas malas. O terceiro fama vai ao hospital copiar a lista dos médicos de serviço e respectivas especialidades.
Terminadas estas diligências, reúnem-se os viajantes na praça principal da cidade, trocam as observações obtidas, entram num café para tomar um aperitivo. Mas antes dão-se as mãos e dançam. Esta dança tem o nome de ‘Alegria dos famas’.
Quando os cronópios vão de viagem, encontram os hotéis cheios, os comboios já partiram, chove a potes, os táxis não os querem levar ou querem imenso dinheiro. Os cronópios não desanimam, pois julgam que isto acontece a toda a gente e, quando se vão deitar, dizem uns aos outros: ‘Bela cidade, belíssima cidade.’ E toda a noite sonham que há grandes festas na cidade e que foram convidados. No dia seguinte levantam-se todos satisfeitos, e é assim que os cronópios viajam.
Sedentárias, as esperanças deixam-se viajar pelas coisas e homens, e são como as estátuas que é preciso ir ver porque elas não se incomodam.
Histórias de Cronópios e de Famas, Julio Cortázar
8.9.15
7.9.15
6.9.15
flores
Estava junto aos escombros do meu pai, com
os restos dos nossos sentimentos à deriva. O meu corpo ainda
dizia o nome dele muito baixinho, como se fosse sangue a
correr nas veias. As lágrimas não caíam, ficavam suspensas
numa antecâmara qualquer do coração ou lá de que lugar é
esse onde as lágrimas são laboriosamente fabricadas.
A Clarisse estava ao meu lado. Estávamos de braço
dado, ela tinha a cabeça encostada ao meu ombro.
Atrás dos meus óculos escuros via as pessoas no enterro,
a Carla estava tão bonita, de preto, com a dor no rosto, os
cabelos lisos e as coxas a sair do vestido curto, mas não podia
pensar naquilo, era o enterro do pai, ainda por cima a Carla é
minha prima direita. Os destroços da morte por todo o lado,
nas caras das pessoas, nas recordações. A mãe gritou algumas
vezes, Zé, Zé, Zé, era o nome do meu pai, e foi nessa altura
que me caíram umas lágrimas, não tanto por ele, naquela
serenidade de cadáver, mas pela dor da mãe, tão pungente
e catártica, tão siciliana na sua forma de se manifestar,
cada Zé que ela gritava era uma facada no ar, Zé, Zé, Zé.
O calor era tanto, o suor escorria-me pelas costas
abaixo, não, não era suor, era a língua da morte a lamber-me a coluna de cima para baixo, a arrastar-me para o chão, a
língua quente dessa estranha entidade que nos transforma
em terra, que transforma tudo em terra. Sentia-lhe o hálito a
flores, porque ela não fede como seria crível, tem o bafo das
coroas de rosas e margaridas e gladíolos com que enfeitamos
os caixões e mais tarde as campas. Cheira tudo a flores, o fim
das coisas cheira a flores, não é a esgoto e a podre. Zé, Zé, Zé,
gritava a mãe, e a morte a lamber-nos as costas, sem parar,
com a ponta da língua muito fina a passar pelos corpos dos
vivos, como quem toma um aperitivo.
E, enquanto o padre mandava o pó voltar ao pó, eu
abençoava Deus com blasfémias.
Flores, Afonso Cuz
DESIERTOS (Fragmentos)
La muerte ha cambiado la forma de la ciudad.
Esta piedra es la cabeza de un niño
y este humo es un suspiro humano.
Alí Ahmad Said Esber (Adonis)
(poeta e ensaísta sírio)
Esta piedra es la cabeza de un niño
y este humo es un suspiro humano.
Alí Ahmad Said Esber (Adonis)
(poeta e ensaísta sírio)
5.9.15
a quem pertence a Europa?
(...) cette Europe multiculturelle será un retour aux sources, car l’Europe est née de l’appropriation du passé et de l’autre.
Edgar Morin, in Qu'est-ce que la culture ?(Yves Michaud)
4.9.15
O encontro inesperado do diverso / O ensaio de música
- Eleanora, o que pensas, já o deixei de pensar. Não te deixes iludir porque pequenas palavras podem ter a sombra de grandes. Provavelmente, o movimento dessa força, que julgas imensa, é ainda quase inexistente.
- Não posso, Anna. Há uma voz, no exterior, que se cruzou com a minha, a minha pobre voz sem lugar, e ainda tem força para «onde estás, meu amor», perguntei, mas a minha intenção firme, e silenciosa, era deixar de pronunciar, definitivamente, qualquer destas palavras porque são um véu transparente que asfixia o meu discernimento, mas não posso, Anna.
Lisboaleipzig
Lisboaleipzig
3.9.15
sinais ambivalentes
Transformar é o que a arte faz, mas a fotografia que testemunha o que foi uma calamidade ou o que é repreensível será muito criticada se parecer «estética»; ou seja, se se parecer demasiado com a arte. O duplo poder da fotografia - gerar documentos e criar obras de arte visual - originaram alguns notáveis exageros quanto àquilo que os fotógrafos devem ou não fazer. Ultimamente, o exagero mais comum é o que encara estes dois poderes como opostos. As fotografias que representam sofrimento não deviam ser belas, assim como as legendas não deviam moralizar. Segundo esta ideia, a beleza de uma fotografia desvia a a tenção da seriedade do tema e foca-a no meio utilizado, pondo desse modo em causa o estatuto da fotografia como documento. A fotografia envia sinais ambivalentes. «Parem com isto», apela. Mas exclama também: «Que espectáculo!»
Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag
2.9.15
Será?
As fotografias atrozes não perdem inevitavelmente a sua capacidade de chocar. Mas não são de grande ajuda quando o que se pretende é compreender. As fotografias fazem outra coisa: perseguem-nos.
Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag
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