Estava junto aos escombros do meu pai, com
os restos dos nossos sentimentos à deriva. O meu corpo ainda
dizia o nome dele muito baixinho, como se fosse sangue a
correr nas veias. As lágrimas não caíam, ficavam suspensas
numa antecâmara qualquer do coração ou lá de que lugar é
esse onde as lágrimas são laboriosamente fabricadas.
A Clarisse estava ao meu lado. Estávamos de braço
dado, ela tinha a cabeça encostada ao meu ombro.
Atrás dos meus óculos escuros via as pessoas no enterro,
a Carla estava tão bonita, de preto, com a dor no rosto, os
cabelos lisos e as coxas a sair do vestido curto, mas não podia
pensar naquilo, era o enterro do pai, ainda por cima a Carla é
minha prima direita. Os destroços da morte por todo o lado,
nas caras das pessoas, nas recordações. A mãe gritou algumas
vezes, Zé, Zé, Zé, era o nome do meu pai, e foi nessa altura
que me caíram umas lágrimas, não tanto por ele, naquela
serenidade de cadáver, mas pela dor da mãe, tão pungente
e catártica, tão siciliana na sua forma de se manifestar,
cada Zé que ela gritava era uma facada no ar, Zé, Zé, Zé.
O calor era tanto, o suor escorria-me pelas costas
abaixo, não, não era suor, era a língua da morte a lamber-me a coluna de cima para baixo, a arrastar-me para o chão, a
língua quente dessa estranha entidade que nos transforma
em terra, que transforma tudo em terra. Sentia-lhe o hálito a
flores, porque ela não fede como seria crível, tem o bafo das
coroas de rosas e margaridas e gladíolos com que enfeitamos
os caixões e mais tarde as campas. Cheira tudo a flores, o fim
das coisas cheira a flores, não é a esgoto e a podre. Zé, Zé, Zé,
gritava a mãe, e a morte a lamber-nos as costas, sem parar,
com a ponta da língua muito fina a passar pelos corpos dos
vivos, como quem toma um aperitivo.
E, enquanto o padre mandava o pó voltar ao pó, eu
abençoava Deus com blasfémias.
Flores, Afonso Cuz