28.12.18

Vinte Mil Léguas Submarinas


 Mil oitocentos e sessenta e seis foi um ano marcado por um acontecimento estranho, um fenómeno inexplicado e inexplicável, de que ainda ninguém certamente se esqueceu. Sem falar dos rumores que agitavam as populações dos portos e alvoroçavam os espíritos no interior dos continentes, a gente do mar andava particularmente emocionada. Negociantes, armadores, capitães de navios, skippers e masters, tanto da Europa como da América, oficiais das marinhas de guerra de todos os países e, por fim, governantes dos dois continentes inquietavam‑se com o fenómeno.
Com efeito, havia já algum tempo que vários navios tinham avistado no alto‑mar “uma coisa enorme”, um objecto comprido, fusiforme, por vezes rodeado por uma espécie de fosforescência, muito mais corpulento e rápido do que uma baleia.


/Vinte Mil Léguas Submarinas, Jules Verne |ed. Relógio D'Água/

27.12.18

25.12.18

24.12.18

O Tchekista (a "minha" segunda história de natal para este ano)

Mas uma qualquer força o atraía na direcção dos cinco homens nus, e virou para eles a cara e os olhos. O lume no cachimbo estremeceu. Um choque doloroso atingiu-lhe os ouvidos. As peças de carne branca e crua abateram-se  no chão. Os tchekistas, com os revólveres fumegantes, afastaram-se logo para trás e fizeram estalar os cães das armas. As pernas dos fuzilados agitavam-se convulsivamente. O gordo, com um guincho sonoro, respirou pela última vez. Srúbov pensou: «A alma existirá ou não? Será talvez a alma que sai assim com um guincho?»


/Vladimír Zazúbrin, O Tchekista/


23.12.18

O Tchekista (a "minha" segunda história de natal para este ano)

Srúbov sentia com toda a clareza, dolorosamente, a situação desesperada dos condenados. Achava que a medida máxima da violência não era o fuzilamento, mas aquela maneira de os obrigar a despirem-se. Sem roupa interior, sobre o chão de terra nua. Nus entre pessoas vestidas. Humilhação extrema. O peso da esperada morte era agravado pelo corriqueiro da situação.  

/Vladimír Zazúbrin, O Tchekista/

20.12.18

Um artista da fome (a "minha" história de natal para este ano)

O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espetáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Na altura toda a cidade seguia o artista da fome; a cada dia do seu jejum aumentava a afluência; todos queriam ver o artista da fome ao menos uma vez por dia; nos últimos dias inscreviam-se pessoas para poderem ficar sentadas o dia inteiro em frente à pequena jaula; até durante a noite, à luz de archotes que intensificavam o efeito, apareciam visitantes; em dias de sol trazia-se a jaula para o exterior para que o artista da fome fosse mostrado às crianças; se para os adultos o espetáculo não passava de um divertimento no qual participavam porque estava na moda, as crianças, por seu lado, estarrecidas, as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras para se sentirem mais seguras, observavam a palidez do artista da fome, o maiô preto dentro do qual sobressaíam poderosas as suas costelas, observavam-no sentado na palha, visto que rejeitava qualquer cadeira, a acenar de tempos a tempos por cortesia, viam-no responder a perguntas com um sorriso forçado, a esticar o braço para que lhe pudessem sentir a magreza, mas logo se afundando em si próprio, porque todos lhe eram indiferentes, até mesmo o bater, para ele tão importante, do relógio, única mobília da jaula, limitava-se a olhar em frente, de olhos quase fechados e a bebericar aqui e ali de um minúsculo copito de água para humedecer os lábios.

[cont.]


/Franz Kafka, Um Artista da Fome e outros textos/

13.12.18

Nome de Guerra

A Vaca Amarela, Franz Marc


Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes deram no baptismo, ou ele tem de seu o bastante para marcar a cada um. Será imprudente deduzir o nome próprio através de fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome próprio de uma pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem. Jules Renard tirou um esplêndido retrato da vaca em tamanho natural: «On l'appelle la vache et c'est le nom qui lui va le mieux.». Como vedes, este corpo-inteiro está extraordinariamente parecido, é vaca por todos os lados.