Em Portugal, existem cerca de trezentos mil homens (são praticamente todos homens) que, às quintas e domingos, entre Agosto e Fevereiro, saem pelos campos para matar animais. Imaginemos que um deus vingativo decretava que, nessas mesmas quintas e domingos, era permitido a outros homens caçar os caçadores. Imaginemos portanto que um destes caçadores de caçadores escrevia a seguinte página de diário:
«Acertei‑lhe na omoplata. Costumo apontar para o ventre,
porque o recuo da arma às vezes faz com o que o tiro lhes esfacele
a cabeça e depois não me servem para nada (pois: gosto de ter as
cabeças embalsamadas na sala, é cada um com a sua mania e esta
é a minha). Deu uma espécie de guincho agudo quando o tiro lhe
acertou. Muitos caem sem fazer barulho, mas eu prefiro sentir
que acertei, dá mais pica. Os cães saltaram de trás de mim e foram
por ali abaixo numa barulheira desenfreada, as narinas esbuga‑
lhadas com o cheiro a sangue. Estava deitado de lado a rebolar‑se
para aqui e para ali, a espingarda caída, um braço levantado com
a mão a acenar. Tinha graça, parecia que estava a chamar um táxi.
Gemia qualquer coisa, não percebi, talvez fosse: «Mãe, mãe...».
Os cães ferraram‑lhe o braço ferido e também uma das pernas e
começaram a arrastá‑lo. Foi uma carga de trabalhos para os afastar
dali, já com pedaços de carne e de camuflado metidos nos dentes.
As gemidelas dele começaram a chatear‑me, é melhor quando
consigo matá‑los à primeira, fazem menos barulho e confusão, e
não fica a cabeça estragada com terra, folhas e sangue de andarem
a esfregar‑se por causa das dores. Ainda por cima, ter de lhes cor‑
tar o pescoço com a faca é uma porcaria, sangram mais que javalis.
Foi então que reparei que havia uma criança acocorada ao lado
dele na moita. É raro virem caçar com crianças. O miúdo tremia
todo e estava de bruços, a cabeça praticamente enfiada no chão.
Podia ter‑lhe acertado mesmo na espinha e pronto, mas acho
uma estupidez matar crianças, depois não crescem e ficamos com
menos peças para abater. O melhor é deixá‑los procriar. Dei um
pontapé no miúdo e mandei‑o embora, foi‑se a correr, aos trope‑
ções contra os ramos, chorava como um desalmado. Aquilo devia
ser medo, mas passa‑lhes depressa. Acabei com o caçador com
um golpe na garganta, ficou tudo sujo mas a cabeça era boa. Não
foi mau domingo. Consegui um abate, estava‑se bem, não chovia
nem fazia muito frio, o ar puro e o exercício abriram‑me o ape‑
tite para o almoço. Na quinta‑feira não posso vir, mas no próximo
domingo estou aqui caído outra vez.»
Os caçadores não matam animais por necessidade, mas por prazer, e não sentem qualquer empatia em relação ao sofrimento que causam, em relação à dor, ao susto, à agonia. A caça será um dia encarada com o mesmo espanto com que hoje olhamos para coisas horríveis que a humanidade fazia antigamente, como as execuções públicas, a tortura pública ou o tráfico de escravos, mas hoje é designada «desporto» e a maior parte das pessoas acha que não tem mal nenhum.
Ouro e Cinza
de Paulo Varela Gomes
[que esteja em paz]