As páginas que se seguem são as notas que ele próprio deixou. É efectivamente nesta primavera de 1975, no exacto momento do degelo, que ele descobre que deixará de existir antes da chegada do outono. Tem um cancro mortal, tardiamente localizado no baço, com metástases nos tecidos circundantes.
A voz que ouvirão a seguir é a dele, não a minha, e por isso me despeço.
...
Encontrei o cão em casa dos Sundblad. Passara ali toda a tarde; tinham-lhe dado biscoitos e água. O que mais me embaraçou foi que, quando o quis trazer de volta, ele se recusou. Resistia, fincava as patas no tapete da cozinha.
Que vergonha. Os Sundblad devem ter pensado que o trato tão mal que ele se nega a acompanhar-me de volta. Mas isso não é verdade.
É qualquer outra coisa, que no entanto não consigo explicar claramente. Diria que o cão, inexplicavelmente, ganhou medo, ...
(...)
Não há nada a fazer. Sempre foi um bom cão, e espero que ainda viva muito tempo.
Não consigo compreender o que se passou. Porta-se, na verdade, como se não me reconhecesse. Ou melhor: reconhece-me, mas a uma distância muito curta, quando me pode ver e ouvir sem ter de se guiar exclusivamente pelo olfacto.
Claro que há ainda uma outra explicação, mas tão absurda que não a posso levar a sério.
Que eu, de repente, tenha mudado de cheiro, de uma maneira tão subtil que apenas o cão consiga perceber.
[Lars Gustafsson, A Morte de um Apicultor]