26.4.20

quando a morte se apaixonou e deixou o mundo ao contrário

Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher.
Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, ascendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma implacável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

[Fim]


|As Intermitências da Morte, José Saramago|

18.4.20

soundtrack




Sometimes
The congregation takes the other side
An inquisition of familiar lies
A grave distraction from a quiet rite

Sometimes
The congregation can't make up its mind
Incarceration creeps up from behind
The implication is its own device
In the middle of a salient fight

Sometimes
The congregation can't be satisfied
Can't be bothered with the ways and whys
Generations like their ways and times

   

13.4.20

A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te


A ridícula ideia de não voltar a ver-te, Rosa Montero 

Viagens

Antony Sojka

7.4.20

Viagens

Também acho que o mundo se encontra no interior de nós próprios, nos sulcos do cérebro e na glândula pineal. É um globo entalado na garganta e, a bem dizer, poderíamos tossir e desengasgar-nos, cuspindo-o.

Viagens, Olga Tokarczuk
|daqui: ilcviagens|

equilibro precisa-se, respeito por ambas as partes também, mas acima de tudo ser humano, sem géneros.

a última vaga feminista traz me muita apreensão. o tom agressivo e acusatório, às vezes meramente provocativo, a escarrar manifestos para marcar presença e manter financiamento. exigem o empoderamento com uma barra de metal nas mãos. discursam com violência e barulho, em monólogo gritado.

para quem tenha tempo e curiosidade, há um excelente documentário, The Red Pill (2016), de Cassie Jaye, e, muito interessante também, este TEDx, posterior, também de Cassie Jaye. 

+++

Mieko Kawakami, também ela escritora, mais suave do que as jovens do documentário acima, a determinada altura, na sua entrevista a Haruki Murakami (que, a propósito, já começou a ser referenciado como sexista), faz-lhe a seguinte observação:

A common reading is that your male characters are fighting their battles unconsciously, on the inside, leaving the women to do the fighting in the real world. For example, in The Wind-Up Bird Chronicle, it’s Kumiko who pulls the plug on the life support system, kills Noboru Wataya, and ultimately pays the price. And in 1Q84, the Leader is killed by Aomame. Granted, it isn’t necessary to apply a feminist critique to every single novel, and a pursuit of rectitude is not why any writer turns to fiction, but reading these books from a feminist perspective, the common reaction would likely be: “Okay, here’s another woman whose blood has been shed for the sake of a man’s self-realization.”

Most women in the real world have had experiences where being a woman made life unlivable. Like victims of sexual assault, who are accused of asking for it. It comes down to the fact that making a woman feel guilty for having a woman’s body is equivalent to negating her existence. There are probably some women out there who have never thought this way, but there’s an argument to be made that they’ve been pressured by society into stifling their feelings. Which is why it can be so exhausting to see this pattern show up in fiction, a reminder of how women are sacrificed for the sake of men’s self-realization or sexual desire.


Haruki Murakami, temeroso da guilhotina social, lá se vai tentando justificar das interpretações feministas, leituras forçadas, porque os tempos assim o obrigam.

I think that any pattern is probably coincidental. At a minimum, I never set things up like that on purpose. I guess it’s possible for a story to work out that way, on a purely unconscious level. Not to sound dismissive, but my writing doesn’t follow any kind of clear-cut scheme. Take Norwegian Wood, where Naoko and Midori are respectively grappling with their subconscious and conscious existences. The first-person male narrator is captivated by them both. And it threatens to split his world in two. Then there’s After Dark. The story is propelled almost exclusively by the will of the female characters. So I can’t agree that women are always stuck playing the supporting role of sexual oracles or anything along those lines. Even once I’ve forgotten the storylines, these women stay with me. Like Reiko or Hatsumi in Norwegian Wood. Even now, thinking about them makes me emotional. These women aren’t just novelistic instruments for me. Each individual work calls for its own circumstances. I’m not making excuses. I’m speaking from feeling and experience.


entrevista in Literary Hub


que pobreza de luta, caras (e caros) senhoras.

5.4.20

the world after coronavirus

The emergency pudding 
One of the problems we face in working out where we stand on surveillance is that none of us know exactly how we are being surveilled, and what the coming years might bring. Surveillance technology is developing at breakneck speed, and what seemed science-fiction 10 years ago is today old news. As a thought experiment, consider a hypothetical government that demands that every citizen wears a biometric bracelet that monitors body temperature and heart-rate 24 hours a day. The resulting data is hoarded and analysed by government algorithms. The algorithms will know that you are sick even before you know it, and they will also know where you have been, and who you have met. The chains of infection could be drastically shortened, and even cut altogether. Such a system could arguably stop the epidemic in its tracks within days. Sounds wonderful, right?

The downside is, of course, that this would give legitimacy to a terrifying new surveillance system.


Yuval Noah Harari 20/03/2020, Financial Times