18.11.17

«Três viagens numa só, o real mas já passado, o imaginário mas presente na palavra, e aquilo que outro indivíduo fará no futuro ao seguir os traços do passado e à base de conselhos do presente,»

«A memória tece-nos e apanha-nos simultaneamente através de um esquema no qual não se participa de forma lúcida; nunca deveríamos falar da nossa memória porque se existe algo que a distingue, esse algo é o facto de ela não ser nossa; trabalha por sua conta, ajuda-nos ao enganar-nos ou quiçá nos engane para nos ajudar; seja como for, de Atenas viaja-se até ao Cabo Súnion num autocarro desengonçado, e isso foi-me explicado em Paris pelo meu amigo Carlos Courau, cronópio infatigável se é que eles existem. 
Explicou-mo à mistura com outros itinerários gregos, cedendo ao prazer de qualquer viajante que, ao contar o seu périplo, o refaz (é por isso que Penélope esperará eternamente) e ao mesmo tempo saboreia uma viagem de substituição, a mesma que esse amigo ao qual lhe está agora a explicar como se vai de Atenas a Cabo Súnion fará. Três viagens numa só, o real mas já passado, o imaginário mas presente na palavra, e aquilo que outro indivíduo fará no futuro ao seguir os traços do passado e à base de conselhos do presente, isto é, que o autocarro saía de uma praça ateniense por volta das dez das manhã e convinha chegar algum tempo antes porque a carripana se enchia rapidamente de passageiros locais e de turistas. 
Já nessa noite, nesse inventário de andanças e de monumentos, a aranha fez uma escolha estranha, porque ao fim e ao cabo, que demónios, o relato que Carlos me tinha feito da sua chegada a Delfos, ou a viagem por mar até às Cíclades, ou a praia de Mikonos ao entardecer, qualquer um dos cem episódios que abarcam Olímpia e Mistra, a visão do canal de Corinto e a hospitalidade dos pastores, tudo era mais interessante e incitador do que o modesto conselho de chegar algum tempo antes a uma praça poeirenta para apanhar um autocarro sem correr o risco de não encontrar um assento livre por entre cestas de galinhas e marines de queixadas paleolíticas. 
A aranha ouviu tudo, e a partir dessa sequência de imagens, perfumes e plintos fixou para sempre a visão imaginária que eu me fazia de uma praça à qual era preciso chegar cedo, de um autocarro à espera por baixo das árvores.»


/A Volta ao Dia em 80 Mundos, Julio Cortázar/