26.5.16

Estrume ou os "Escrúpulos de Bem-Falante"

Abril, 1874.

Recebemos pela posta o seguinte bilhete:

"Desejo que o crítico das Farpas que ultimamente traduziu para o teatro de D. Maria o Marquês de Villemer, queria ter o incómodo de informar-me se acha que seja permitido na boa sociedade de Lisboa, a uma menina tão bemeducada como Mademoiselle de Saint-Railles na comédia aludida, proferir a palavra estrumes. Espero resposta. — Sua leitora."


Respondemos.

Minha leitora. — Não sei se na boa sociedade as meninas querem ou não permitir-se empregar na conversa as mais nobres palavras que tem uma língua — as que se referem à cultura da terra e aos fenómenos da criação.
Em Caneças sei que os saloios têm nesse ponto umas reservas cheias de pudicícia e que pedem licença prévia para falarem num cavalo ou num porco. Não posso dizer até que ponto os usos da sociedade de Caneças penetram na sociedade de Lisboa.

A minha opinião particular é: que uma menina bem-educada está autorizada a proferir em toda a parte os nomes claros, técnicos, insubstituíveis das coisas, que ela tem obrigação de saber. Ora, dessas coisas, as primeiras que deve aprender uma senhora são a arte da jardinagem e a arte da cozinha — os dois princípios rudimentares da grande ciência de criar e de alimentar o homem.
Michelet, de todos os grandes pensadores modernos aquele que mais amou as mulheres e que deu na terra o paraíso àquelas que tiveram a ventura de serem a sua mulher, a sua filha e a sua neta, concebeu a regeneração da humanidade pela educação da mulher e começou a instruí-la fazendo-a penetrar os altos segredos da natureza e da vida por meio do estudo tão moralizador e tão elevado da jardinagem e da cozinha.

O estrume é o ponto de união entre a cozinha e o jardim, os dois sagrados domínios da inteligência da mulher superior, da esposa, da mãe, da nobre criadora, da alimentadora, da protectora do homem.

O estrume é um dos factos mais interessantes e mais curiosos da grande história profunda da terra e da natureza. É o objecto mais digno da atenção do nosso espírito.

O estrume é a história toda da química, da geologia, da biologia, da botânica.

O estrume, de per si só, explica-nos a grande e sublime evolução que constitui a vida nos vegetais, nos animais e no homem.

O estrume é a base, a origem, a condição primitiva e essencial de todas as coisas e de todos os seres sobre a superfície da Terra. É o grande legado imenso, portentoso, sucessivamente deixado de geração em geração ao género humano. Tudo o mais desaparece diante do roer do tempo, o eterno verme.
Desaparecem as obras da arte, as do talento, as das civilizações mais fortes e mais firmes. Somente se não aniquila, antes de dia para dia se acrescenta e se renova, o estrume, no qual lentamente se convertem todos os destroços, todas as ruínas e todos os monumentos que vai deixando em volta de si a passagem do homem.

Tudo passa.

O estrume fica eternamente.

Fica para que reverdeça a relva, para que se desdobrem os vinhedos pelas colinas, para que ondeiem as searas pelas planícies, para que cantem as cotovias por entre as laranjeiras e os lilases, para que os rebanhos se alastrem por baixo dos olivedos, para que as crianças continuem a rir, para que as mulheres continuem a amar, para que os homens continuem a aprender, e para que a minha leitora me dirija no bilhete mais doce a pergunta mais estranha.

Suprimindo o estrume, soçobraria o mundo.

Na vida moral o estrume é uma lição ainda mais importante do que na vida física. O estrume explica-nos a lei moral da solidariedade universal. Nele aprendemos que é nosso destino pertencermos fatalmente aos nossos semelhantes e à grande mãe Natureza. Que a vida individual é um empréstimo divino feito pela vida universal a que eternamente pertencemos. Que a morte, finalmente, não é outra coisa senão a doce restituição à suprema vitalidade da terra dos elementos que absorvemos dela.

Se, todavia, apesar destas singelas e passageiras reflexões, que submeto à consideração da minha leitora, S. Exª entender que se deve abster de proferir a palavra estrume, fica S. Exª autorizada para a substituir, em todo o decurso destas linhas que lhe consagro, por qualquer outra que lhe pareça mais curial e mais idónea. Onde se ler estrume, S. Exª poderá dizer, por exemplo: o arrebol, a brisa, a toilette à Rabagas ou a valsa a dois tempos. E Caneças aplaudirá.


[in As Farpas]