— O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto.
Oito segundos é o recorde dele.
Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava,
mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldição que
pesava sobre as mulheres. Alguém lhe tinha dito que o mundo
só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e
os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse
lá um dia.
— Onde ouviste isso? — disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora ela visse, nesse
momento, a sua dignidade bastante comprometida.
— Não sei.
— Comigo não faças mistérios.
— Não faço mistérios, não sou pessoa para isso. Foi uma
coisa que li.
— O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady
Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com
essa do sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer?
— Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma
clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a
abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento!
Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo.
— Tu nunca choras, Maria Rosa.
— Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e
me cortaram o cabelo à rapaz. Dei gritos tamanhos que até se
ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós vivíamos
num chalé dentro dum jardim grande.
— Não querias parecer um rapaz.
— Não sei. Era uma grande pena. Nunca me senti tão
infeliz depois disso. Às vezes pensava no que me fez chorar tanto e não encontro o motivo. Morreu-me um filho em
pequenino mas não é a mesma coisa. Estás certa que sermos
mulheres é a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o
prazer com que convencem o desejo, são coisas horríveis, se
lhes pintarmos toda a sorte de maldades que são o excitante
necessário. Já agora que falaste de Lady Chaterley, essa
mulher tremenda e sem compaixão. Sem compaixão, o sexo é
uma batalha vulgar, um crime como não há outro igual.
— Deixas-me arrasada. Agora não sei se hei-de fazer o
aborto ou não. Dizes bem: aquele burro do Lawrence não percebeu
nada das mulheres. Ou só percebeu o que era para perceber
por ele próprio. Não houve o primeiro Adão mas a primeira
Eva. Dá-me mais uma pinga de chá. Onde compras o
chá? A mamã comprava-o numa loja de modas, era chique.
Nunca percebi a diferença do que é chique e do que não é chique.
Disse-me o Mariano, que é professor na Universidade:
“Porque é que o amarelo não há-de dizer com o rosa?” Depois
as cores psicadélicas ficaram na moda. É uma questão de
votos e não de gostos? O que é que faz o voto?
— Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage
avariou. O voto é uma inveja compulsiva, aí tens.
Passados dias Patrícia Xavier morreu e aquilo entendeu-se
como um desastre. Os médicos calaram-se no diagnóstico, o
que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido
a uma parteira e não teve a assistência do tal experiente arrombador
de cofres.
A Ronda da Noite, Agustina Bessa-Luís