9.2.16

A Ronda da Noite

— O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde dele. 

Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um dia. 

— Onde ouviste isso? — disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida. 

— Não sei. 

— Comigo não faças mistérios. 

— Não faço mistérios, não sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li. 

— O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer?

— Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. 

— Tu nunca choras, Maria Rosa. 

— Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo à rapaz. Dei gritos tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós vivíamos num chalé dentro dum jardim grande. 

— Não querias parecer um rapaz. 

— Não sei. Era uma grande pena. Nunca me senti tão infeliz depois disso. Às vezes pensava no que me fez chorar tanto e não encontro o motivo. Morreu-me um filho em pequenino mas não é a mesma coisa. Estás certa que sermos mulheres é a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o prazer com que convencem o desejo, são coisas horríveis, se lhes pintarmos toda a sorte de maldades que são o excitante necessário. Já agora que falaste de Lady Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixão. Sem compaixão, o sexo é uma batalha vulgar, um crime como não há outro igual. 

— Deixas-me arrasada. Agora não sei se hei-de fazer o aborto ou não. Dizes bem: aquele burro do Lawrence não percebeu nada das mulheres. Ou só percebeu o que era para perceber por ele próprio. Não houve o primeiro Adão mas a primeira Eva. Dá-me mais uma pinga de chá. Onde compras o chá? A mamã comprava-o numa loja de modas, era chique. Nunca percebi a diferença do que é chique e do que não é chique. Disse-me o Mariano, que é professor na Universidade: “Porque é que o amarelo não há-de dizer com o rosa?” Depois as cores psicadélicas ficaram na moda. É uma questão de votos e não de gostos? O que é que faz o voto? 

— Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage avariou. O voto é uma inveja compulsiva, aí tens. 

Passados dias Patrícia Xavier morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os médicos calaram-se no diagnóstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e não teve a assistência do tal experiente arrombador de cofres.


A Ronda da Noite, Agustina Bessa-Luís