Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda. Seu pai, também Calisto, era cavaleiro fidalgo com filhamento, e décimo sexto varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolástica, procedia dos Silos, altas dignidades da Igreja, comendatários, sangue limpo, já bom sangue no tempo do Sr. rei D. Afonso I, fundador de Miranda.
Fez seus estudos de latinidade no seminário bracarense o filho único do morgado da Agra de Freimas, destinando-se a doutoramento in utroque jure. Porém, como quer que o pai lhe falecesse, e a mãe contrariasse a projectada formatura, em razão de ficar sozinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou à carreira das letras, deu-se ao governo do casal algum tanto, e muito à leitura de copiosa livraria, parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em cânones, cónegos, desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima de sua mãe.
Casou o morgado, ao tocar pelos vinte anos, com sua segunda prima D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca, senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, ignorante mais que o necessário para ter juízo.
Unidos os dois morgadios, ficou sendo a casa de Calisto a maior da
comarca; e, com o rodar de dez anos, prosperou a olho, tendo grande parte neste incremento a parcimónia a que o morgado circunscreveu
seus prazeres, e, por sobre isto, o génio cainho e apertado de D. Teodora.
Remenda teu pano, chegar-te-á ao ano, dizia a morgada de Travanca;
e, aferrada ao seu adágio predilecto, remendava sempre, e
cerzia com perfeição justamente admirada entre a família, e falada
como exemplo na área de quatro léguas, ou mais.
[...]
É supérfluo dizer-se a qual doutrinação política pendia o ânimo
do morgado da Agra de Freimas. Estava com a decisão das Cortes
de Lamego. Fizera-se nelas, e cuidava ter assistido, em 1145,
àquele congresso mitológico, e ter conclamado com Gonçalo Mendes
da Maia, e com Lourenço Viegas, o Espadeiro: Nos liberi sumus, rex
noster liber est. Todavia, se assim fossem todos os doutrinários políticos, a gente apodreceria na mais refestada paz e supina ignorância
do andamento da humanidade.
Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse
o passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de
João das Regras e Martim de Ocem, como o mosteiro da Batalha, as
Ordenações Manuelinas como o convento dos Jerónimos.
O mal que de aqui surdia ao género humano, a falar verdade,
era nenhum. Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiuçar
desdouros nas gerações das famílias patrícias, era inofensiva criatura.
Deste senão, a causa foi um chamado Livro-Negro, que herdara
de seu tio-avô Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falcão,
genealógico vaporoso, o qual gastara sessenta dos oitenta anos vividos,
a coligir borrões, travessias, mancebias, adultérios, coitos
danados e incestos de muitas famílias, naquelas satânicas costaneiras,
denominadas Livro-Negro das Linhagens de Portugal.
Em suma, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de
empecer a roda do progresso, contanto que o progresso não lhe
entrasse em casa, nem o quisesse levar consigo.
Prova cabal de sua tolerância foi ele aceitar em 1840 a presidência
municipal de Miranda. Na primeira sessão camarária falou
de feitio e jeito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um
alcaide do século XV levantado do seu jazigo da catedral. Queria
ele que se restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo
monarca fundador. Este requerimento gelou de espanto os vereadores;
destes, os que puderam degelar-se riram na cara do seu presidente,
e emendaram a galhofa dizendo que a humanidade havia já
caminhado sete séculos depois que Miranda tivera foral.
— Pois se caminhou, — replicou o presidente — não caminhou
direita. Os homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis
devem ser sempre as mesmas.
— Mas… — retorquiu a oposição ilustrada — o regímen municipal
expirou em 1211, Sr. presidente! V. Ex.a não ignora que háhoje um código de leis comuns de todo o território português, e que
desde Afonso II se estatuíram leis gerais. V. Ex.a decerto leu isto…
— Li — atalhou Calisto de Barbuda — mas reprovo!
— Pois seria útil e racional que V. Ex..a aprovasse.
— Útil a quem? — perguntou o presidente.
— Ao município — responderam.
— Aprovem os senhores vereadores, e façam obra por essas leis,
que eu despeço-me disto. Tenho o governo de minha casa, onde sou
rei e governo, segundo os forais da antiga honra portuguesa.
Disse; saiu; e nunca mais voltou à Câmara.
A Queda de um Anjo, (do grande) Camilo Castelo Branco
(da biblioteca digital da Porto Editora)