«Há quase mil anos, durante o Califado Fatímida - que se estendia, no seu apogeu, do oceano Atlântico, a oeste, à Península Arábia, a leste - um oleiro sentou-se no seu ateliê, no Cairo, e fez uma tigela. As técnicas que utilizou, da forma do barro ao vidrado metálico e à decoração aplicada após a cozedura, eram notoriamente islâmicas. O sacerdote que pintou no interior da tigela era inconfundivelmente cristão.
A tigela é um dos vários objetos expostos no Museu Britânico ["Egito: fé depois dos faraós", até 7 de fevereiro em Londres]. Contam a história de um encontro de fés no Egito. Numa carta amarelada, com quase um milénio, um mercador judeu louva os seus parceiros comerciais muçulmanos. Páginas de bíblias medievais hebraicas e cristãs surgem lado a lado com um Corão com oito séculos. A história de pluralismo religioso no Egito é rica e matizada. Tal como é, infelizmente, o currículo dos que têm ocupado o poder no que toca a explorar e manipular as divergências religiosas ao longo dos séculos, em seu próprio benefício.
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Nada é mais perigoso para as elites dominantes do que os egípcios que se assumem como cidadãos autónomos e não dependentes. Daí que a contrarrevolução tenha lutado por repor uma cultura de controlo vindo de cima e obediência imposta em baixo.
Para tal, enredou-se na politica egípcia uma estirpe de nacionalismo chauvinista, que reforça linhas de fratura diversas, vistas como menos ameaçadoras para o antigo regime. Em vez de cidadãos de diferentes fés e passados unidos para derrubar as instituições repressivas do Estado, o atual Presidente, Abdul Fatah al-Sisi, exige uma população agradecida e vergada, que forme "uma mão" com os líderes políticos, banindo dissidentes para tão longe quanto possível, excluindo-os do agregado familiar.
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Jack Shenker, in Courrier internacional - Jan/2016