[Eduardo Jorge]: Poeira. Das cinzas saltamos à poeira. Certa vez a senhora comentou que a poeira a acompanha desde a infância. Seria a poeira uma espécie de convidada estrangeira?
[Maria Filomena Molder]: Poeira era a dedada do sol quando entrava na casa da minha infância. Percebi logo que ela era também de origem cósmica, quer dizer, pertencia a tudo o que estava em redor muito longe, longíssimo (traduzido agora, incontáveis anosluz): hostes de seres minúsculos que habitavam, trémulos, instáveis, o raio de sol numa agitação constante. Dizia para mim: “está tudo cheio de poeira e eu não sabia antes deste raio de sol entrar pela janela”, maravilhada e ao mesmo tempo perto de um terror que não provocava paralisia. Era uma coisa de infância, um anúncio, tanta coisa que existe sempre ao nosso lado, que enche a nossa boca quando a abrimos, penetra nos cabelos, rodopia à nossa volta e nós sem darmos dela. A luz descobriu-a. Esta poeira também pousava nos móveis, nas vidraças das janelas, mas aí não dançava, esperava pelos nosso dedos que abriam sulcos, desenhos, nesse estado chamava-se pó e limpava-se. Nunca tive a certeza de que fossem a mesma.