Na manhã em que o vieram buscar - dois homens à porta e outros dois na rua - ele cerrou os dentes com força, recusando-se à emoção em altura tal, e só lhe disse:
- Espera por mim, Júlia!
Mas beijou-a, primeiro na boca e depois nas mãos, com devoção, como a desfazer-se em água de alma, que nem ele jamais se apercebera de que lhe queria também assim.
No isolamento da cela reinventava-a, rememorava dia a dia, minuto a minuto, os quatro anos percorridos lado a lado; lamentava o tempo que não lhe dava por esta ou por aquela razão; tinha-a, com toda a gama dos seus olhares, queixumes, suspiros, gritos e êxtases, em todos os alaridos raivosos da sua continência forçada. De noite, ele que briosamente velava, em face dos estranhos e de si próprio, pela sequidão dos seus olhos e pela nudez dos seus lábios, acordava debulhado em lágrimas, assistindo à agonia de ausência que ela, sozinha em casa, conheceria.
Depois foram as visitas - de cada vez meia hora de sol, mesmo que o sol exterior não luzisse no firmamento. Um vidro a separá-los, as palmas das mãos esposando-se, uma de cada lado dessa delgada, mas intransponível fronteira que os dividia. E quase nada conseguiam dizer. Falavam sobretudo pelos olhos, pelo tremer da boca, pelo pasmo atroz do final na ocasião de se separarem. A tarde que se seguia era de todas a mais dolorosa, mas ainda quente do calor de vida que ela trouxera. E sucedia-se o deserto de uma nova, longa, tórrida semana, contando os dias que faltavam para a luz breve de outra visita. Durante meses, e na perspectiva de anos iguais.
(...)
Contos da Solidão (1970), Urbano Tavares Rodrigues