Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um
corpo incompreensível
aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino tristeza de menino a
quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer
de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de
tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os
que ainda podem interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o
espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura
que pela rua arrasta a sua condição de animal
fulminado
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de
um soldado a arder em febre, aves a percorrer o
seu novo deserto
mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do
homem é doce e iluminada como a noite como
um rasto de fumo sobre os hospitais
tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras
paragens; outra sombra, outros olhos seme-
lhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os
meus, altos como cidades, altos como flores
parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais
que descer as escadas, fechar ainda a porta do
teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria
vida
agora posso sonhar até deixar de te ver
belo rio sem lágrimas