25.2.15

La fin du monde | Gao Xingjian, 2006




                             – Estás a magoar-te? – perguntei a Fangfang.
                             – Gosto disto – respondeste em voz baixa.
                             Durante a nossa lua de mel, até a dor nos pés
                             era uma sensação de felicidade. E todas as desgraças
                             do mundo pareciam deslizar entre os nossos tornozelos.
                             Parecia que tínhamos voltado à infância, de pés descalços
                             como crianças a brincar na água.

                             [Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, Gao Xingjian]


22.2.15

Azul


Vieira da Silva


Não é o vermelho a cor do arrebatamento, mas o azul. A época mais deslumbrante de Picasso foi chamada «azul»; a de Vieira da Silva também.

[Agustina Bessa-Luís, Longos Dias Têm Cem Anos, Presença de Vieira da Silva, Guimarães Ediores, p. 15]


19.2.15

7.2.15

Tractatus Logico-Philosophicus

1 The world is everything that is the case.

[...]

7 Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.




unoverso

um poema que não nos tomasse
mais do que um único verso
que fecundasse essa noite
numa úmida e só palavra
numa única e só sílaba
menos do que isso

num arfar


[mallarmargens]



5.2.15

para ti, que me geraste.




A posse de ontem

Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores. Como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre ao meu lado. Quando quero escandir versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ilíon passou, mas Ilíon perdura no hexágono que a chora. Israel aconteceu quando era uma antiga nostalgia. Todo o poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é angustia e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos. 

Os Conjurados

4.2.15

Artigo 1056º do Código Civil

Oiça, vizinha: o melhor
É combinarmos o modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

Passo os meus dias a vê-la
Bordar ao pé da sacada.
Não me tiro da janela,
Não leio, não faço nada…

0 seu trabalho é mais brando,
Não lhe prende o pensamento,
Vai conversando, bordando,
E acirrando o meu tormento…

0 meu não: abro um artigo
De lei, mas nunca o acabo,
Pois dou de cara consigo
E mando as leis ao diabo.

Ao diabo mando as leis
Com excepção dum artigo:
0 mil e cinquenta e seis…
Quer conhecê-lo? Eu lhe digo:

«Casamento é um contrato
Perpétuo». Este adjectivo
Transmuda o mais lindo pacto
No assunto mais repulsivo.

«Perpétuo». Repare bem
Que artigo cheio de puas.
Ainda se não fosse além
Duma semana, ou de duas…

Olhe: tivesse eu mandato
De legislar e poria:
Casamento é um contrato
Duma hora – até um dia…

Mas não tenho. É pois melhor
Combinarmos algum modo
De acabar com este amor
Que me toma o tempo todo.

[Augusto Gil no Estúdio Raposa]

3.2.15

Puras capelas, lágrimas mais puras.






six feet under


- “Porque é que as pessoas têm que morrer?”

– “Para que a vida se torne importante”.



2.2.15

letra

Cerne, caroço, coração da língua. Em seu âmago, é pele sobre o corpo. Matéria árida, resistente, indivisível. Nó: Imagem-visual-sonora-impulso-orgânico-morte-vidamatéria-traço-opaco-resto. Traço entre uma e outra palavra. Intervalo mínimo entre a ponta dos dedos e o objeto: toque, grão da voz, centelha do olhar. Litoral entre o traço singular e seu modelo: na abstração da letra A (inexistente), infinitizam-se grafias de pequenos a. A letra concernida no risco. Em sua intimidade de letra escrita – a –, há sua exterioridade indiscernível: A, modelo de todas as outras. Unidade indestrutível, Aleph. Nó: de fora para dentro, superfície; de dentro para fora, centro.