28.12.18

Vinte Mil Léguas Submarinas


 Mil oitocentos e sessenta e seis foi um ano marcado por um acontecimento estranho, um fenómeno inexplicado e inexplicável, de que ainda ninguém certamente se esqueceu. Sem falar dos rumores que agitavam as populações dos portos e alvoroçavam os espíritos no interior dos continentes, a gente do mar andava particularmente emocionada. Negociantes, armadores, capitães de navios, skippers e masters, tanto da Europa como da América, oficiais das marinhas de guerra de todos os países e, por fim, governantes dos dois continentes inquietavam‑se com o fenómeno.
Com efeito, havia já algum tempo que vários navios tinham avistado no alto‑mar “uma coisa enorme”, um objecto comprido, fusiforme, por vezes rodeado por uma espécie de fosforescência, muito mais corpulento e rápido do que uma baleia.


/Vinte Mil Léguas Submarinas, Jules Verne |ed. Relógio D'Água/

27.12.18

25.12.18

24.12.18

O Tchekista (a "minha" segunda história de natal para este ano)

Mas uma qualquer força o atraía na direcção dos cinco homens nus, e virou para eles a cara e os olhos. O lume no cachimbo estremeceu. Um choque doloroso atingiu-lhe os ouvidos. As peças de carne branca e crua abateram-se  no chão. Os tchekistas, com os revólveres fumegantes, afastaram-se logo para trás e fizeram estalar os cães das armas. As pernas dos fuzilados agitavam-se convulsivamente. O gordo, com um guincho sonoro, respirou pela última vez. Srúbov pensou: «A alma existirá ou não? Será talvez a alma que sai assim com um guincho?»


/Vladimír Zazúbrin, O Tchekista/


23.12.18

O Tchekista (a "minha" segunda história de natal para este ano)

Srúbov sentia com toda a clareza, dolorosamente, a situação desesperada dos condenados. Achava que a medida máxima da violência não era o fuzilamento, mas aquela maneira de os obrigar a despirem-se. Sem roupa interior, sobre o chão de terra nua. Nus entre pessoas vestidas. Humilhação extrema. O peso da esperada morte era agravado pelo corriqueiro da situação.  

/Vladimír Zazúbrin, O Tchekista/

20.12.18

Um artista da fome (a "minha" história de natal para este ano)

O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espetáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Na altura toda a cidade seguia o artista da fome; a cada dia do seu jejum aumentava a afluência; todos queriam ver o artista da fome ao menos uma vez por dia; nos últimos dias inscreviam-se pessoas para poderem ficar sentadas o dia inteiro em frente à pequena jaula; até durante a noite, à luz de archotes que intensificavam o efeito, apareciam visitantes; em dias de sol trazia-se a jaula para o exterior para que o artista da fome fosse mostrado às crianças; se para os adultos o espetáculo não passava de um divertimento no qual participavam porque estava na moda, as crianças, por seu lado, estarrecidas, as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras para se sentirem mais seguras, observavam a palidez do artista da fome, o maiô preto dentro do qual sobressaíam poderosas as suas costelas, observavam-no sentado na palha, visto que rejeitava qualquer cadeira, a acenar de tempos a tempos por cortesia, viam-no responder a perguntas com um sorriso forçado, a esticar o braço para que lhe pudessem sentir a magreza, mas logo se afundando em si próprio, porque todos lhe eram indiferentes, até mesmo o bater, para ele tão importante, do relógio, única mobília da jaula, limitava-se a olhar em frente, de olhos quase fechados e a bebericar aqui e ali de um minúsculo copito de água para humedecer os lábios.

[cont.]


/Franz Kafka, Um Artista da Fome e outros textos/

13.12.18

Nome de Guerra

A Vaca Amarela, Franz Marc


Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes deram no baptismo, ou ele tem de seu o bastante para marcar a cada um. Será imprudente deduzir o nome próprio através de fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome próprio de uma pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem. Jules Renard tirou um esplêndido retrato da vaca em tamanho natural: «On l'appelle la vache et c'est le nom qui lui va le mieux.». Como vedes, este corpo-inteiro está extraordinariamente parecido, é vaca por todos os lados.


11.11.18

Aplastamiento de las gotas

    Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Llueve todo el tiempo, afuera tupido y gris, aquí contra el balcón con goterones cuajados y duros, que hacen plaf y se aplastan como bofetadas uno detrás de otro, qué hastío. Ahora aparece una gotita en lo alto del marco de la ventana; se queda temblequeando contra el cielo que la triza en mil brillos apagados, va creciendo y se tambalea, ya va a caer y no se cae, todavía no se cae. Está prendida con todas las uñas, no quiere caerse y se la ve que se agarra con los dientes, mientras le crece la barriga; ya es una gotaza que cuelga majestuosa, y de pronto zup, ahí va, plaf, deshecha, nada, una viscosidad en el mármol. 


    Pero las hay que se suicidan y se entregan enseguida, brotan en el marco y ahí mismo se tiran; me parece ver la vibración del salto, sus piernitas desprendiéndose y el grito que las emborracha en esa nada del caer y aniquilarse. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adiós gotas. Adiós.


Historias de Cronopios y de Famas, Julio Cortazar

27.10.18

pisando flores



O Matadouro

Eu tinha oito anos, oito anos e meio. A França acabava de ganhar, depois de Félix Faure, um novo Presidente da República, o senador Émile Loubet. Eram férias da Páscoa. O feliz eleito, como brinde pelo alegre advento, concedeu-nos mais um dia feriado. Foi nesse dia que, saltando de cima de um celeiro para vender o desafio de um colega, quebrei uma perna.
Os médicos, nesses tempos distantes, em vez de engessarem em série os coxos dos desportos de inverno, procediam à silicatização das pernas partidas. Quer dizer, após a fractura ter sido atenuada, envolvem a perna lesada com uma espessa camada de algodão, depois enrolam uma ligadura abundantemente embebida numa solução de silicato de soda. Este invólucro, quando seca, torna-se duro como um calhau, como sílex. Chegado o momento de o retirar, não era uma tarefa fácil. Era necessário cortá-lo, penosamente, com uma grande tesoura, e como era sólido! No meu caso, o que se viu aparecer, depois desse trabalho árduo, foi uma lastimável pernita, completamente definhada, magra e pálida como uma endívia. Oh, Oh, disse o médico. Vai ser preciso fortalecê-la. O que falta a este pequeno são banhos de sangue, de sangue fresco. Para isso tem de ir ao matadouro.
Na realidade, deveria ter dito escaldadouro. Todos os açougueiros das cidadezinhas, nessa altura, faziam as suas próprias matanças nos seus escaldadouros particulares. Era um celeiro ao fundo do pátio, com o chão parcialmente cimentado. Mesmo lá ao fundo adivinhavam-se alguns estábulos na sombra. Era para ali que eu ia.
O homem do talho chamava-se Parendeau. Pusera ali uma cadeira para mim. Sentava-me nela muito bem comportado. No fundo do seu recinto o animal mugia já: alguma vaca, vazia de leite ou estéril, engordada para o talho. Mugia muito, lugubremente; pressentia a morte, eu sabia-o, sabia-o até nas minhas entranhas. O homem içava-a na ponta de uma corda, eu escutava o passo insubmisso, os cascos resistindo um a um, que se fincavam a cada puxão, procurando escorar-se de qualquer maneira. Eu desviava o olhar, observava as traves lá em cima, os falsos veios de mármore, nas paredes devoradas pelo salitre.
Entretanto, o açougueiro passava a corda por dentro de uma argola presa solo. E puxava. A cabeça da vaca inclinava-se, inclinava-se até tocar no comente com o focinho. (...)

/Terno Bestiário, Maurice Genevoix/

A Revolução Silênciosa



um minuto de silêncio

Num País Livre

Eram gregos do Egipto. Iam de viagem para o Egipto mas o Egipto já não era a sua terra. Tinham sido expulsos; eram refugiados. Os invasores tinham saído do Egipto; depois de muitas humilhações, o Egipto estava livre; e aqueles gregos, os pobres, os que, graças a uns ofícios  simples, se tinham tornado menos pobres que os pobre egípcios, eram vitimas dessa libertação.


/V. S. Naipaul, Num País Livre/

22.10.18

O Prémio

Sentia-se cansado como se tivesse um milhão de anos e o peso da cabeça, que parecia oca, incomodava-o. Todos os seus nervos dormentes exigiam descanso. Esticou os braços por cima da mesa, posou neles a testa e tentou alhear-se dos acontecimentos que estavam a desenrolar-se. Mas o seu cérebro fatigado recusava-se a adormecer. E ia pensando: «O que eu desejava era morrer devagar, em paz, sem dar nas vistas, como uma velha planta no escuro. Por que demónio se teriam aqueles malditos suecos lembrado de me pôr em evidência e de me humilhar, forçando-me a morrer em público? Agora sou imortal, nos livros oficiais, mas continuo a ser tão dolorosamente mortal como quando acordei esta manhã.» E recordou-se da observação sardónica de Bernard Shaw quando recebera o Prémio Nobel, aos sessenta e nove anos: «Este dinheiro é um cinto de salvação que se atira a um nadador depois de ele já ter chegado à praia.» E cogitava: «No meu caso, eu diria... um cinto de salvação que se atira a um afogado.» Depois não pensou em mais nada.


/O Prémio, Irving Wallace/

16.10.18

A Arte de Caminhar - Houve um dia em que a minha avó deixou de andar. Nesse mesmo dia morreu.



You're walking. And you don't always realize it
But you're always falling
With each step, you fall forward slightly
And then catch yourself from falling
Over and over, you're falling
And then catching yourself from falling
And this is how you can be walking and falling
At the same time


{O pé de uma criança não sabe o que é um pé / E quer ser uma borboleta ou uma maçã - Pablo Neruda}

15.10.18

Solar

Ele pertencia a essa classe de homens — de aparência vagamente desagradável, muitas vezes calvos, baixos, gordos, inteligentes — que são inexplicavelmente atraentes para certas mulheres belas. Ou ele julgava que o era, e pensá-lo parecia fazer com que assim fosse. E ajudava o facto de certas mulheres estarem convencidas de que ele era um génio a precisar que o socorressem.


(início de) Solar, Ian McEwan

a encantadora Monalisa de Fernando Botero

Museu Botero, Bogotá

Fica tudo bem (depois de uma manhã terrível)

5.10.18

HUMAN




HUMAN is a collection of stories and images of our world, offering an immersion to the core of what it means to be human. Through these stories full of love and happiness, as well as hatred and violence, HUMAN brings us face to face with the Other, making us reflect on our lives. From stories of everyday experiences to accounts of the most unbelievable lives, these poignant encounters share a rare sincerity and underline who we are – our darker side, but also what is most noble in us, and what is universal. Our Earth is shown at its most sublime through never-before-seen aerial images accompanied by soaring music, resulting in an ode to the beauty of the world, providing a moment to draw breath and for introspection.

HUMAN is a politically engaged work which allows us to embrace the human condition and to reflect on the meaning of our existence.

daqui

1.9.18

a pele

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.

/Luís Miguel Nava/

O frio é a porta do desaparecimento, a proximidade do não-ser


«A poesia portuguesa da sua geração teve relações próximas com a  espanhola, uma ligação que depois se atenuou e que agora talvez esteja a regressar com os autores mais novos. Manteve, ou mantém, contacto com poetas portugueses?

Conheci alguns. Na minha longínqua juventude, até tive Miguel Torga em Leão. E dedicou-me um livro, ele que nunca fazia dedicatórias. Escreveu: “a António” e assinou “T.”.


Dedicatória, sim, mas não exageremos…

[Risos]. Mas também conheci pessoalmente Mário Cesariny. E embora nunca o tenha encontrado, troquei correspondência com Herberto Helder: uma pessoa talvez um pouco difícil, mas um grande, grande poeta. E há o caso muito triste do Luís Miguel Nava, que era visita de minha casa.»


|entrevista a Antonio Gamoneda in Público - 22.02.2014|

31.8.18

L'Athéisme de Jesus


Nicolas Rivals



Je suis athée et cela n’a pas de sens.

Absurde.

Absurde, comme si Jésus avait renoncé.

Absurde comme si Jésus avait dépassé 33 ans.

Absurde comme si notre monde athée 
avait pu se construire sans lui.

À mon image paradoxale et incohérente,
Jésus ne peut pas avoir et n’aura jamais, 
plus de 33 ans.

25.8.18

#MeToo: a ressaca

4. A complexidade do que está em jogo obriga-nos a superar qualquer maniqueísmo, seja ele descritivo ou moral, que não consiga ver/pensar o mundo para além dos "homens" e das "mulheres" como entidades globais, unívocas, definitivamente estabelecidas e operantes. O inegável mal-estar nasce de uma verdade muito básica que, não poucas vezes, algumas militâncias feministas resistem a encarar. A saber: não é possível pensar a sexualidade omitindo a sua inscrição em sistemas de relações que envolvem poder. Do mesmo modo, é preciso tentar compreender como os poderes inerentes às relações se inscrevem em todas as regiões do comportamento humano, incluindo a sexualidade

João Lopes

24.8.18

Forest Man

Since the 1970's Majuli islander Jadav Payeng has been planting trees in order to save his island. To date he has single handedly planted a forest larger than Central Park NYC. His forest has transformed what was once a barren wasteland, into a lush oasis. Humble yet passionate and philosophical about his work. Payeng takes us on a journey into his incredible forest.



18.5.18

O medo

Uma manhã, ofereceram-nos um porquinho-da-índia. Chegou a casa numa gaiola. À tarde, abri-lhe a porta da gaiola. Voltei a casa ao anoitecer e encontrei-o tal como o deixara: no fundo da gaiola, encostado às grades, a tremer do susto da liberdade.

 /Eduardo Galeano, O livro dos Abraços/

6.5.18

No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro.

Fiona Sami

Allégeance

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n’est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l’aima?

Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L’espace qu’il parcourt est ma fidélité. Il dessine l’espoir et léger l’éconduit. Il est prépondérant sans qu’il y prenne part.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s’inscrit son essor, ma liberté le creuse.

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n’est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l’aima et l’éclaire de loin pour qu’il ne tombe pas?

23.4.18

Cléo de 5 à 7

Agnès Varda eloquently captures Paris in the sixties with this real-time portrait of a singer (Corinne Marchand) set adrift in the city as she awaits test results of a biopsy. A chronicle of the minutes of one woman’s life, Cléo from 5 to 7 is a spirited mix of vivid vérité and melodrama (daqui)


15.4.18

do Belo e do Azul

 Eiko Ojala 


do Belo

autor desconhecido

Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola


«Porque é que ‘tão a olhar para mim?
Não vim para ficar…»

Não é que me tivesse propriamente esquecido, não conseguia era lembrar-me. Havia outras coisas mais importantes.

«Porque é que ‘tão a olhar para mim?
Não vim para ficar…»

Se me conseguia lembrar do resto do poema ou não era irrelevante. A verdade daquela afirmação era como um lenço amassado, encharcado nos meus punhos, e quanto mais cedo aceitassem isso, mais depressa eu poderia abrir as mãos e deixar o ar arrefecer-me as palmas.

«Porque é que ‘tão a olhar para mim…?»

Os meninos da ala infantil da Igreja Metodista Episcopal de Pessoas de Cor contorciam-se de riso por causa do meu proverbial esquecimento.
Levava um vestido de tafetá alfazema e, sempre que inspirava, o tecido restolhava e, como eu estava a sorver ar e a expirar vergonha, o ruído fazia lembrar o papel crepe que se usa na traseira dos carros funerários.
Enquanto observava a Mãezinha a pôr folhos na bainha e umas preguinhas bonitas na cintura, soube que, assim que o vestisse, iria parecer uma estrela de cinema. (Era de seda, o que compensava a cor horrorosa.) Eu ia parecer uma daquelas meninas brancas e graciosas, que encarnavam tudo o que havia de bom no mundo, o ideal de toda a gente. Delicadamente pousado em cima da máquina de costura Singer preta, o vestido era mágico, e, quando as pessoas me vissem com ele, viriam ter comigo a correr e diriam: «Marguerite [às vezes, era “querida Marguerite”], por favor perdoa-nos, não sabíamos quem eras», e eu responderia, generosamente: «Não, não podiam saber. É claro que vos perdoo.»


/Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola, Maya Angelou/

11.4.18

De Numeral / Nomimal

Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.

***

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.

7.4.18

Na Memória dos Rouxinóis

1.

Nasceu para ser um número primo


Jorge Rousinol nem sempre foi Jorge Rousinol. Até 5 de agosto de 1945, era o Sete, um número primo.
Jorge foi o sexto neto a nascer e o avô Rousinol, matemático galego próximo de Franco, apenas decorou o nome dos primeiros cinco. Quando Jorge nasceu, desperto e sem chorar, fitou o avô com os seus olhos cinzento-espelho, que, até aos dias de hoje, pareciam as águas de duas bacias que devolvem ao mundo o que o mundo lhes dá, mas num tom mais sombrio -- ou, como Jorge dirá, mais realista.
O avô viu-se refletido nos olhos do neto e, talvez pelo seu narcisismo, concedeu que seis era pouco para a importância absoluta daquele recém-nascido. Saltou um algarismo e atribuiu-lhe a posição sete, um número primo. Sinal de reconhecimento de que este era apenas divisível por ele próprio ou pela unidade. Traço de personalidade que cedo se manifestou em Jorge Rousinol: não ter outro divisor natural, ser ele a única referência do seu sistema de medida.


 /Na Memória dos Rouxinóis, Filipa Martins/

Axolotl

Hubo un tiempo en que yo pensaba mucho en los axolotl. Iba a verlos al acuario del Jardín des Plantes y me quedaba horas mirándolos, observando su inmovilidad, sus oscuros movimientos. Ahora soy un axolotl.

|cont. aqui | em pt aqui|

Julio Cortazar

1.4.18

A Dança da Victória

- Que tal, Marín? Como vai isso?
- Como sempre, director.
- É uma pena que não tenhas beneficiado da amnistia.
- Eu não sou um simples ladrão de galinhas, senhor. A mim têm-me aqui dentro por assassínio.
- Deve ter sido muito grave, para te darem prisão perpétua.
- Sim.
- Foram muitos generosos contigo. Quantos assassínios cometeste?
- Mais de um, director.
- De modo que as possibilidades de saíres por bom comportamento daqui a uns anos são escassas.
- Diga antes nulas. Explicitamente, não me fuzilaram com a recomendação rigorosa de que por nenhum motivo me deviam baixar a pena.
- E tu não preferirias o pelotão? Porque, ao fim ao cabo, isto não é vida, pois não?
- Não é vida, mas a vida é a vida. Seja qual for. Nem um verme gosta que o esmaguem.


/A Dança da Victória, Antonio Skármeta/

31.3.18

...

Pierdo la razón si hablo, pierdo los años si callo.

23.3.18

Concordância de género

Por detrás de cada grande homem,
ouvira dizer,
estava sempre uma grande mulher. Por detrás
de cada grande mulher, seria provável,
haveria sempre um grande homem.
Olhava em volta e não via nenhum,
nem antes nem após.
Ninguém para a empurrar, ninguém
atrás de quem se pudesse esconder.
Era apenas ela,
tão crua quanto a roupa que tinha despido.
Baça, suja e sem
valer o trabalho de a apanhar do chão.

(Ou talvez,
e esse seria o seu problema,
não houvesse nela nada de grande.
Nem as mãos, nem as mamas,
nem a boca, nem a cona,
nem o tempo, nem a escrita.
A mediocridade, sabia-se,
tem-se sempre a si mesma
como termo de comparação.)


/Madalena de Castro Campos, aqui/

22.3.18

é-papel, sim senhor.

mais coisa, menos coisa, o idoso sou eu.


Gerhard Haderer

/roubado no Panda/

21.3.18

Uma faca só lâmina

Uma faca só lâmina

Assim como uma bala

enterrada no corpo,

fazendo mais espesso

um dos lados do morto;

assim como uma bala

do chumbo mais pesado,

no músculo de um homem

pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse

um vivo mecanismo,

bala que possuísse

um coração ativo

igual ao de um relógio

submerso em algum corpo,

ao de um relógio vivo

e também revoltoso,

relógio que tivesse

o gume de uma faca

e toda a impiedade

de lâmina azulada;

assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia;

qual uma faca íntima

ou faca de uso interno,

habitando num corpo

como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,

e sempre, doloroso

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.

Seja bala, relógio,

ou a lâmina colérica,

é contudo uma ausência

o que esse homem leva.

Mas o que não está

nele está como bala:

tem o ferro do chumbo,

mesma fibra compacta.

Isso que não está

nele é como um relógio

pulsando em sua gaiola,

sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está

nele está como a ciosa

presença de uma faca,

de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica

aquela ausência sôfrega

que a imagem de uma faca

reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca

entregue inteiramente

à fome pelas coisas

que nas facas se sente.


/João Cabral de Melo Neto/

6.3.18

[Quando os dias são iguais e tristes]

Quando os dias são iguais e tristes
gosto de beber
para galgar a distância
que me separa do ser.
As veias levam o álcool
e o álcool embebeda-se no tanto que percorre.

Sabendo no corpo os caminhos todos
mistura-lhes o fora
dos quartos
das salas
da paisagem casa
da atmosfera inteira.

Fico tonta de universo,
e vibro               e julgo
que os dias já não são iguais nem tristes.


Salette Tavares

/obrigada, Vício/

3.3.18

Biblioteca Pessoal - Eça de Queirós

"No ano final do século XIX, morreram em Paris dois homens de génio, Eça de Queirós e Oscar Wilde. Que eu saiba, nunca se conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente."

/Biblioteca PessoalJorge Luis Borges/

20.2.18

19.2.18

Silêncio na Era do Ruído




«O desconforto de estarmos sós, contendo a língua e limitando-nos simplesmente a ser, não começou com o advento da televisão nos anos 50, nem com a chegada da Internet nos anos 90 ou com os smartphones dos nossos dias; foi sempre um problema e Pascal foi provavelmente o primeiro a escrever sobre essa sensação.»


/Silêncio na Era do Ruído, Erling Kagge/

18.2.18

O Imortal

Este palácio é obra dos deuses, pensei, antes de tudo. Explorei os desabitados recintos e corrigi: Os deuses que o construíram já morreram. Notei suas características e disse: Os deuses que o construíram estavam loucos. Disse-o, bem sei, com uma incompreensível reprovação que era quase  um remorso, mais de horror intelectual do que de medo sensível. À impressão da enorme antiguidade juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente insensato.


Jorge Luis Borges

Quando sair daqui,

arranco-te com os meus próprios dentes
as unhas dos pés, essas manias
e as chaves do carro,
sua ordinária, pensei, sua mentirosa, pensei,
sua puta, pensei,
mas pensei baixinho e com pouco entusiasmo:
era difícil sujar a minha mulher
sem rebaixar-me ainda mais.
Tens sorte, pensei.
Podia imaginar o teu futuro liso e bem esticado
como a pele de um leopardo
à entrada de uma loja de antiguidades.
Admito até provar o teu amargo sangue,
para lembrar-me que antes fui um escravo,
mas não consigo fazer de ti,
assim obesa e malcheirosa como andas,
o móbil de um crime passional.


/Golgona Anghel, Nadar na Piscina dos Pequenos/

12.2.18

Biblioteca Pessoal

«Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler», disse eu uma vez. Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor. Desejo que esta biblioteca seja tão diversa como a não saciada curiosidade que me induziu, e continua a induzir-me, à exploração de tantas linguagens e de tantas literaturas. Sei que o romance não é menos artificial do que a alegoria ou a ópera, mas incluirei romances porque também eles entraram na minha vida. Esta série de livros heterogéneos é, repito, uma biblioteca de preferências.

María Kodama e eu errámos pelo globo da terra e da água. Chegámos ao Texas e ao Japão, a Genebra, a Tebas e, agora para juntar os textos que foram essenciais para nós, percorreremos as galerias e os palácios da memória, como escreveu Santo Agostinho.

Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram. «A rosa é sem porquê», disse Angelus Silesius; séculos depois Whistler declararia «A arte acontece».

Oxalá que sejas o leitor que este livro aguardava.



           

                                                                                                        J.L.B.


/Biblioteca Pessoal, Jorge Luis Borges/

5.2.18

In the Mood for Love




/pintura de Gao Xingjian/

mãe

Fiona Sami

«Gritamos palavras, tesos como falos a fornicar o caos.»

E a própria Paulette acompanhava uma Internacional descabelada com voz de falsete. Divertidos, contentes de viver, e era tudo. Cada um com as suas opiniões obscuras e pessoais, intraduzíveis e mais além.
Muitas vezes fazíamos política a sério, discutindo conjecturas impossíveis, indignando-nos ferozmente com as enormes desigualdades, sem ideias claras, desnorteados, sôfregos, ignorantes. Éramos demasiado verdadeiros para sermos sólidos. Um sofisma nas trombas e ficávamos KO.


/Golpes, Jean Meckert/

4.2.18

Bukowski escreveu ao editor:

«Tenho duas hipóteses — ficar nos Correios e enlouquecer… ou ficar aqui a brincar aos escritores e morrer de fome. Decidi morrer de fome.» 

/a arte subtil de saber dizer que se f*da, Mark Manson/

31.1.18

28.1.18

Fado

Alberto, meu primo, bateu na porta. Abri. Ele estava branco e disse: aconteceu uma coisa horrível, ligaram lá pra casa. Eu sentei. Ele explicou: o carro capotou. Um vapor tomou meu peito e logo em seguida um gelo absurdo pareceu-me pausar os batimentos. Fiquei um pouco surdo. Olhei fundo para seus olhos afogueados. Ele só balançou a cabeça e disse: ninguém. Num acesso, arranquei o telefone com fio e tudo. Depois coloquei no lugar. Ele tentou me segurar e eu fiz sinal de silêncio. Corri para o quarto e desliguei o celular. Tudo era câmera lenta, pesadelo com serpentes. Alberto perguntou onde estava a mãe. Eu disse que no jardim dos fundos tratando as flores. Ele perguntou se eu queria que chamasse o padre. Eu disse que não. Que ficasse feito um pastor alemão na porta e não deixasse ninguém entrar. Ninguém. Eu me incumbiria de dar a notícia. Empurrei-o para o portão da frente. Tranquei as portas e janelas. E fui para os fundos da casa. Lá estava ela. Cabelos algodão. Sorrindo para os pés de brincos de princesa e retirando as ervas daninhas com suas mãos delicadas. Numa paz sem-par.

A mãe que perde um filho, se não for firme, perde também a razão.

Fiquei do basculante tremendo e com medo que ela olhasse pra mim. Ela falava sozinha. Talvez conversasse com as plantas. Sorria continuamente.

Uma senhora quando perde a nora amada, se não for sensata, perde também o rumo da pouca vida que lhe resta.

O dia era de julho e o sol morno a fez tirar o chapéu de palha e jogá-lo ao seu lado. Ela olhou para o astro. E sorriu. Ficou assim por uns cinco minutos. E eu tinha que ser o terrível mensageiro; eu de nome angelical. Entrar naquele ato e destruir o final feliz. Dei dois passos em direção à porta dos fundos e me urinei todo. Meu corpo entrara em colapso.

Uma avó que perde três netos, possivelmente perde a fé em qualquer santo, em qualquer deus.

Ela estava sentada no chão feito criança que brinca no barro. Sequei o assoalho. Corri até o quarto e troquei a bermuda. Minha carne tremia descontroladamente. Alberto socou a porta. Mandei que parasse. Ele disse que os vizinhos queriam saber de coisas. Exigi que dissesse a eles que eu precisava de mais um tempo. Que se calassem também.

Uma morte é um despropósito. Cinco, uma aberração.

Ela estava radiante de feliz. E eu faria qualquer coisa para que aquele sorriso durasse mais um, quinze, trinta minutos que fossem. Que fossem os últimos trinta minutos de felicidade de sua vida. Nunca mais eu teria a oportunidade de vê-la assim: serena. Tratando de seu jardim. Ela mirou a porta da cozinha e subitamente desfez o sorriso. Ficou olhando-me tensa com uma interrogação de: ‘tudo bem? Apesar desta tua cara de espanto e horror…’. Desci as escadas lentamente. Cada minuto a mais de uma dor só minha era uma eternidade de alegria no pouco tempo que lhe restava. E ela se levantou, limpou as mãos barrentas no avental. Pegou o grande chapéu de palha e saiu me puxando para o orquidário. Sentou-se. Segurou minha mão e pediu que eu me sentasse também. Perguntou-me o que me afligia. Disse que nada grave. Então ela me pediu para ajudar a retirar as folhas secas e alguns fungos de suas mil orquídeas. Assim o fiz. Alguém arranjaria um jeito de arrombar a porta. De vir gritando. De pular o muro. De chamar um chaveiro.

E eu a todo momento engolindo o horror. Mas o tempo de paz, este eu esticaria e daria a ela ainda que custasse uma eternidade para meus olhos que ansiavam virar mar.


Fado, Angelo Pessoa

3.1.18

nude


Hugues Erre