30.4.16

«quintas e domingos»



Em Portugal, existem cerca de trezentos mil homens (são praticamente todos homens) que, às quintas e domingos, entre Agosto e Fevereiro, saem pelos campos para matar animais. Imaginemos que um deus vingativo decretava que, nessas mesmas quintas e domingos, era permitido a outros homens caçar os caçadores. Imaginemos portanto que um destes caçadores de caçadores escrevia a seguinte página de diário:

«Acertei‑lhe na omoplata. Costumo apontar para o ventre,
porque o recuo da arma às vezes faz com o que o tiro lhes esfacele
a cabeça e depois não me servem para nada (pois: gosto de ter as
cabeças embalsamadas na sala, é cada um com a sua mania e esta
é a minha). Deu uma espécie de guincho agudo quando o tiro lhe
acertou. Muitos caem sem fazer barulho, mas eu prefiro sentir
que acertei, dá mais pica. Os cães saltaram de trás de mim e foram
por ali abaixo numa barulheira desenfreada, as narinas esbuga‑
lhadas com o cheiro a sangue. Estava deitado de lado a rebolar‑se
para aqui e para ali, a espingarda caída, um braço levantado com
a mão a acenar. Tinha graça, parecia que estava a chamar um táxi.
Gemia qualquer coisa, não percebi, talvez fosse: «Mãe, mãe...».

Os cães ferraram‑lhe o braço ferido e também uma das pernas e
começaram a arrastá‑lo. Foi uma carga de trabalhos para os afastar
dali, já com pedaços de carne e de camuflado metidos nos dentes.
As gemidelas dele começaram a chatear‑me, é melhor quando 
consigo matá‑los à primeira, fazem menos barulho e confusão, e
não fica a cabeça estragada com terra, folhas e sangue de andarem
a esfregar‑se por causa das dores. Ainda por cima, ter de lhes cor‑
tar o pescoço com a faca é uma porcaria, sangram mais que javalis.
Foi então que reparei que havia uma criança acocorada ao lado
dele na moita. É raro virem caçar com crianças. O miúdo tremia
todo e estava de bruços, a cabeça praticamente enfiada no chão.
Podia ter‑lhe acertado mesmo na espinha e pronto, mas acho
uma estupidez matar crianças, depois não crescem e ficamos com
menos peças para abater. O melhor é deixá‑los procriar. Dei um
pontapé no miúdo e mandei‑o embora, foi‑se a correr, aos trope‑
ções contra os ramos, chorava como um desalmado. Aquilo devia
ser medo, mas passa‑lhes depressa. Acabei com o caçador com
um golpe na garganta, ficou tudo sujo mas a cabeça era boa. Não
foi mau domingo. Consegui um abate, estava‑se bem, não chovia
nem fazia muito frio, o ar puro e o exercício abriram‑me o ape‑
tite para o almoço. Na quinta‑feira não posso vir, mas no próximo
domingo estou aqui caído outra vez.»

Os caçadores não matam animais por necessidade, mas por prazer, e não sentem qualquer empatia em relação ao sofrimento que causam, em relação à dor, ao susto, à agonia. A caça será um dia encarada com o mesmo espanto com que hoje olhamos para coisas horríveis que a humanidade fazia antigamente, como as execuções públicas, a tortura pública ou o tráfico de escravos, mas hoje é designada «desporto» e a maior parte das pessoas acha que não tem mal nenhum.


Ouro e Cinza
de Paulo Varela Gomes 
[que esteja em paz]


21.4.16

«todo o amor é um grito desesperado que apenas ouve o eco»*





[o vídeo é tão bonito]



*Miguel Torga, Esperança


20.4.16

é a isto que se chama a Pornochanchada?...

agora sim, estou mais descansada. andava sem perceber a razão do aumento da conta da edp. os moços do call-center bem me diziam que era dos acertos, nada havia de errado, mas 250€ de luz, num tão curto mês, nunca me pareceu a quantia acertada. felizmente, neste belo país, tudo tem uma boa razão. que seja muito feliz, com o seu aumento, Sr. Dr. António Mexia (e afins). bom saber, que pude (e continuarei a) contribuir.


15.4.16

por minha culpa, minha tão grande culpa


Sofia Bonati



não me tivesse eu deixado tentar pela gula dos trapos primaveris...


[hão-de ser comidos pelo bolor da humidade, antes mesmo da estreia.]


13.4.16

12.4.16

nós, virtuais, também fenecemos.


não somos mais do que as palavras que decidimos partilhar.

é neste pensamento que me firmo, enquanto vou apagando o endereço de vários blogs que entretanto decidiram morrer. nunca conheci os seus autores, tão pouco senti tal vontade, - regra sagrada da blogosfera, sei-o agora, nunca confundir autores com personagens - e, no entanto, mentiria, se negasse que cada delete não me traz uma estranha tristeza.

roubando palavras à Martha colombinana [pero rogando que no llueva]


Cansados de inventar palabras

de dar nombre al silencio

para ahuyentar tristezas

Cansados de mirar al cielo

rogando que llueva

Que el agua o el viento

traigan un gesto que nos vuelva la vida

Cansados de pedir a los muertos

que colmen nuestras horas 

que inunden con sus voces nuestro lecho oscuro

Cansados por fin de creer

en laberintos

Optamos por dejar de interrogar esquinas

por ignorar promesas

Optamos al fin por esa eternidad

                                          que es el olvido.


6.4.16

a europa hipócrita e as suas brincadeirinhas didácticas...

e se fosse eu

a princípio, julguei que fosse apenas um role play tolinho, o faz de conta do politicamente correcto. mas depois de ler as participações de algumas figuras públicas, tão ímpares na sociedade portuguesa, fiquei com a dúvida se não se trataria de um novo concurso numa ilha deserta ou se antes de um anúncio a malas de viagem.



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livros com mais de mil e quinhentas páginas são uma excelente ideia, não só podem ser usados como banco ou mesa, como ainda nos ajudam a manter em forma e com uma postura correcta, enquanto caminhamos. além disso, duram: não vá dar-se o caso dos políticos lá da ilha se estarem nas tintas para nós e nos manterem à espera no barco, durante vários meses.




2.4.16

a todos os intrépidos meninos, com um beijinho especial para o traquinas do meu coração.



2 de Abril, Dia Mundial da Consciencialização do Autismo


Joey Chou


A Morte de um Apicultor: frases soltas ii

«E agora, principalmente quando as dores voltam, sinto muita falta dela.
E ao mesmo tempo, é perfeitamente claro que aquilo era impossível entre nós. Foi por puro milagre que a nossa história durou tanto tempo.
Tudo, toda a nossa vida estava baseada num só principio muito simples, um acordo:
Proibição de nos vermos. Quero dizer, proibido vermo-nos verdadeiramente um ao outro.
É um jogo bastante complicado, o de tentar manter um tal acordo durante doze ou treze anos sem nunca deixar cair a máscara, mesmo quando estamos zangados ou muito tristes. É como se vivêssemos fechados numa sala exígua com alguém, com a condição de lhe virar sempre as costas.
É preciso perceber, claro, o que há por trás de um tal acordo.
A meu ver, é a dor. Uma espécie de sofrimento original, que carregamos desde a infância e que não deve ser mostrado. O facto de o sofrimento estar escondido é bem mais importante do que a sua existência.»


A Morte de um Apicultor: frases soltas

suspeito que não tenho nenhum outro livro com tantos cantos dobrados...


«Notei que na cara dela havia pequenas borbulhas ou pequenas verrugas, como se tivesse tido uma estranha doença de pele, o que me fez repentinamente mudar de ideias. Apesar desta sensação, continuei a falar, e ela respondeu, conversando comigo de forma agradável e educada. Pode ser que a tenha conhecido num daqueles dias inconvenientes em que é proibido ter sexo. Ela, nas redondezas, tem fama de ser bonita.
No entanto, senti uma espécie de alívio depois daquele encontro. Ela libertou-me de uma sensação que estava a querer transformar-se uma espécie de desassossego, e de um mau hábito que tenho, que consiste em apegar-me a tudo aquilo que me atrai de forma inquietante.»


«Quando deixamos por instantes o subconsciente à solta, ele começa naturalmente a criar enredos. Cria uma identidade, adapta-se ao meio, inventa novas formas para preencher o vazio que entretanto se faz quando esquecemos a nossa vida imediata.
Não há nada pior para o subconsciente, parece, do que a sensação de não ser ninguém


«Não sei porquê, talvez por causa da minha ansiedade, mas só me interessava a sedução.
A palavra pode parecer um pouco solene, é verdade... mas tratava-se disso mesmo, sedução.
Queria provar a mim próprio que realmente existia. E isso só acontece quando exercemos efeito noutra pessoa.»


«Ainda hoje penso que ela gostava mesmo de mim, sim, quase me amava, havia pelo menos algo em mim que a fascinava. Mas também acho que nunca conheci ninguém que tivesse tanto medo de mim como ela.»



A Morte de um Apicultor

As páginas que se seguem são as notas que ele próprio deixou. É efectivamente nesta primavera de 1975, no exacto momento do degelo, que ele descobre que deixará de existir antes da chegada do outono. Tem um cancro mortal, tardiamente localizado no baço, com metástases nos tecidos circundantes.
A voz que ouvirão a seguir é a dele, não a minha, e por isso me despeço.

...


Encontrei o cão em casa dos Sundblad. Passara ali toda a tarde; tinham-lhe dado biscoitos e água. O que mais me embaraçou foi que, quando o quis trazer de volta, ele se recusou. Resistia, fincava as patas no tapete da cozinha.
Que vergonha. Os Sundblad devem ter pensado que o trato tão mal que ele se nega a acompanhar-me de volta. Mas isso não é verdade.
É qualquer outra coisa, que no entanto não consigo explicar claramente. Diria que o cão, inexplicavelmente, ganhou medo, ...


(...)


Não há nada a fazer. Sempre foi um bom cão, e espero que ainda viva muito tempo.
Não consigo compreender o que se passou. Porta-se, na verdade, como se não me reconhecesse. Ou melhor: reconhece-me, mas a uma distância muito curta, quando me pode ver e ouvir sem ter de se guiar exclusivamente pelo olfacto.
Claro que há ainda uma outra explicação, mas tão absurda que não a posso levar a sério.
Que eu, de repente, tenha mudado de cheiro, de uma maneira tão subtil que apenas o cão consiga perceber.  


[Lars Gustafsson, A Morte de um Apicultor]