29.11.15

Amor (IV)

Amor (III)

... No dia seguinte, ao meio-dia, a criada de quarto de Alexandra traz-me a seguinte resposta: "Estou muito contente venha oje peço-lhe espero por si sem falta. Sua A." Nem uma vírgula. Aquela ausência de pontuação, o hoje sem h, toda a carta e até o longo e estreito sobrescrito onde ela fora metida, me enchiam a alma de enternecimento.

Amor, Anton Tchekhov

“Amor e Matemática”

Também já o ouvi dizer que a culpa de odiarmos matemática é sua e dos seus colegas. Eles não o detestam um bocadinho por dizer estas coisas?

Acho que alguns sim. Infelizmente alguns dos meus colegas parecem gostar de fazer parte de uma elite – de saber alguma coisa a que os outros não têm acesso. Acho isso escandaloso. Este conhecimento precioso pertence-nos a todos e nós, matemáticos, devemos partilhá-lo, torná-lo acessível a toda a gente. Na verdade, acho que a maioria dos matemáticos concordaria comigo neste ponto. 


anoitecer



Amor (III)

Amor (II)

É também um grande prazer para qualquer um fechar uma carta, vestir-se devagar e sair docemente de casa para ir levar aquele tesouro à caixa do correio. Já não há estrelas no céu; em seu lugar, no Levante, aparece por sobre as casas tristes uma longa faixa branca cortada, aqui e além, por nuvens e que inunda todo o céu de uma claridade pálida. A cidade dorme, mas os carros da água já saíram, a sereia de uma fábrica distante acorda os trabalhadores. Junto à caixa vê-se infalivelmente um porteiro enregelado, metido no seu grande capote em forma de sino e de pau na mão. Está em catalepsia: não dorme nem vela, o seu estado é intermédio...
Se as caixas de correio soubessem o número de vezes que lhes é pedido que resolvam a felicidade das pessoas, não teriam um ar tão tranquilo. Quanto a mim, quase beijei a minha, e, olhando-a, lembrei-me de que o correio é o soberbo bem!...
Convido todos os que já estiveram apaixonados, a recordarem-se de que, uma vez posta a carta na caixa, as pessoas se apressam a correr para casa, a deitarem-se e a puxarem para cima o cobertor, com a certeza absoluta de que, no dia seguinte, não acordam sem logo se lembrarem da véspera, e de que hão-de olhar com entusiasmo para a janela por onde a luz do dia abre avidamente caminho, através das pregas dos cortinados...
Mas voltemos à nossa história...
(...)

Amor, Anton Tchekhov


28.11.15

a propósito dessa estranha febre consumista, que abre alas à detestável época natalícia, a black friday

Promoção, aproveitem
duas inutilidades são sempre
mais trágicas que só uma.
Sejam consumidores alerta
que em breve não haverá
nem um por dois nem cinco por três.
O segundo fica grátis, o primeiro não interessa. 
Sejam inteligentes,
ajudem o sofrido mundo das coisas
a desaparecer
a uma velocidade que rebente
os stocks do desespero
a fico tudo em cartão de pontos.

“Balada a Philip Muir”

Philip Muir cruza o Atlântico em seu navio.
Nem almirante nem corsário: copeiro inglês.
Pele de nácar, pintas de ouro, cabelo ruivo.
Philip Muir, de brancas unhas, correto e esguio,
é um puro lorde, pelo silêncio e pela altivez.

Diz-me: Good evening, endireitando-me a cadeira.
Espera as ordens. Não fita os olhos em ninguém.
Após dois dias, conhece todos os meus gostos
à mesa. E apenas corre com o olhar a lista inteira
da sopa à fruta. Nunca se esquece do chow mein.

Do lado do Norte, há sangue nas águas do Oceano.
E do lado de Leste. E nas terras. Sangue inglês.
E por baixo do mar andam as sombras sem passos…
Philip Muir, no meio do desastre humano,
serve champanhe, hoje. Amanhã, seu sangue, talvez.

Diz-me: Good evening, endireitando-me a cadeira.
Mais tarde, na noite, acende seu cachimbo e vem
ver as estrelas nascendo do amargo horizonte,
– ilhas dormentes, que o vento embala a noite inteira…
e muitas cenas – tão diferentes! – mais além.

Nenhum soldado será mais grave nem mais frio
que Philip Muir, se ainda chega a sua vez.
Coberto de lama, sangue, injúria, dor e morte,
Philip Muir partirá num outro navio,
navio de nuvem, mas com mastro de altivez.

Nem duque nem lorde: um simples homem da Britânia.
Nem almirante nem corsário: copeiro inglês.


De Poemas de viagem (1940-1964)


daqui: Autores e Livros

Amor (II)

Amor (I)

(...) Não que eu quisesse fazê-la mais extensa, mais florida ou sentimental, mas porque sentia um desejo sem limites de prolongar o prazer de escrever, ali sentado no silêncio do escritório onde mirava a noite primaveril e conversava com os meus próprios sonhos. Entre as linhas via aquela imagem querida, e parecia-me que estavam ali, sentados à mesma mesa e também a escrever, espíritos como eu inocentemente felizes, mas sorrindo beatificamente. Eu escrevia sem deixar de olhar a minha mão ainda elanguescida por um recente aperto de mão, e, se me acontecia deitar um olhar de lado, via a grade do portão verde. Fora através dessa grade que Alexandra me olhara depois de eu lhe ter dito adeus. Nesse momento não pensava em nada e contentava-me com admirar a sua pessoa, como faz qualquer homem bem-educado diante de uma mulher bonita; mas quando, através da grade, vi os seus dois grandes olhos, compreendi de súbito, como numa inspiração, que estava apaixonado, que entre nós tudo esta definitivamente resolvido, e que só me restava respeitar as formalidades.
(...)

Amor, Anton Tchekhov

27.11.15

The Backwater Gospel

“As long as anyone can remember, the coming of The Undertaker has meant the coming of death. Until one day the grim promise fails and tension builds as the God fearing townsfolk of Backwater wait for someone to die.”






26.11.15

Amor

"Três horas da manhã. Das minhas janelas vê-se uma tranquila noite de Abril, em que as estrelas tremeluzem ternamente. Não durmo. Sinto-me bem.
Por todo o meu ser, da cabeça aos pés, há um sentimento bizarro e incompreensível. Não sei analisá-lo assim de repente, não tenho tempo nem pachorra para isso, e além disso, essa análise não interessa nada. Ora vamos! Irá o homem que se atira de cabeça do campanário de uma igreja ou o que sabe que ganhou 200 mil rublos procurar um sentido para as suas impressões? Tanto se lhe dá!"
Era mais ou menos assim que começava uma carta de amor a Alexandra, uma rapariga de 18 anos por quem me tinha apaixonado. Cinco vezes a tinha recomeçado e outras tantas rasgara o papel, riscara folhas inteiras e copiara de novo. Essa carta tinha-me ocupado um longo momento, como um romance encomendado. (...)

Amor, Anton Tchekhov

instantâneos

O político engana o rato,
Cujas dentadas são rançosas
Naquela ferida de aloé.
O sol está no armário.

O sol está no armário.
Aquele criado desfaz o esqueleto,
E talha a mama científica.
Luz através do retrato.

Sombra através do retrato.
O anão da cave, irado
Como o arminho, periscopeia
A relojoaria da lua.

O vigário no seu jogo
Desenrola o fio de pesca,
Espera um charco nivelado.
Sombra através do armário.

1952

25.11.15

...

Stop The Draft Week, Oakland, 1967, Jeff Blankfort 


“It’s very frustrating. I’ve become very disillusioned with the American political situation. Taking photographs of someone having his head broken in by a police club? I’ve taken that so many times that I’m sick and tired of it. I mean you never become immune to the point of accepting it, but you become almost brutalised to the fact that you can stand by taking pictures quite calmly without your hands shaking while someone is having their head broken in by a police club. And you don’t go and stop that policeman from doing it.”



24.11.15

Um coração ardente

O  velho voltou-se para a janela que emoldurava o céu estrelado.
Sorriu. Tinha uma bela voz.
– Mas eu dizia que na minha juventude fui um escritor que acabou
enveredando por todos os gêneros literários, fiz poesia, prosa...
Na realidade, eu não tinha talento, mas tinha a paixão e daí meti-me
também na política, cheguei a escrever uma doutrina para meu
partido enquanto mergulhava na filosofia, ó Sócrates, ó Platão!...
Trazia na lapela do paletó o distintivo de filósofo, uma corujinha
de esmalte vermelho pousada num livro.
Calou-se. Acendeu um cigarro. Tinha no olhar uma expressão de
afetuosa ironia, zombava de si mesmo, mas sem amargura.
– Eu não tinha talento nem para a literatura e nem para a filosofia,
nenhuma vocação para aqueles ofícios que me fascinavam, essa é
a verdade, tinha um coração ardente, eis aí, tinha apenas um coração
ardente.

(continua aqui)


Um coração ardente, Lygia Fagundes Telles

Sem drama

Poucas pessoas gostam de poesia,
embora a maioria,
como é sabido, diga que sim.
É que a  poesia, erva ruim,
cresce sem pedir licença
e não precisa de jardim
para marcar presença.

Vicejando em qualquer lado,
há quem a ponha na lapela
para o encontro aprazado.
Outros mostram-na à janela
no lugar do cortinado.

Mas, sem que nisso haja drama,
raros são decerto aqueles
que a fazem dormir com eles
noite após noite na cama.

Rua de Camões

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe


Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho


Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva


Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto


E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça


O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia


Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão


A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes


Não olhes para os rapazes
que é feio.

Nota sobre Shakespeare

O erro deles, o erro em que a maior parte deles cai, é tentar calcular e determinar, com a mais fina aparelhagem, a origem da ferida.
Procuram, com a devida tenção, os espaços entre a aparência e o vazio que dela depende. Vão ao encontro da ferida com deferência, um bisturi, uma agulha e uma linha. Logo à entrada do bisturi, alarga-se o espaço. Com a utilização da agulha e da linha, a ferida coagula e atrofia-se-lhe nas mãos.
Shakespeare escreve pela ferida aberta e, por ele, sabemos quando está aberta e quando está fechada. Somos capazes de dizer quando pára de bater e dizê-la no ponto mais alto da febre.

Várias Vozes, Harold Pinter, ed. Quasi

22.11.15

...

A flor receia a morte?
Toca-a? Cheira-a?
Devolve o seu perfume
à ondulação profunda?

Vira-se para a luz.

A morte é a flor
quando se abre.

daqui: canal de poesia


...

 Eduardo Gageiro, Aeroporto, Lisboa, Portugal, 1962.

Poeira

[Eduardo Jorge]: Poeira. Das cinzas saltamos à poeira. Certa vez a senhora comentou que a poeira a acompanha desde a infância. Seria a poeira uma espécie de convidada estrangeira?

[Maria Filomena Molder]: Poeira era a dedada do sol quando entrava na casa da minha infância. Percebi logo que ela era também de origem cósmica, quer dizer, pertencia a tudo o que estava em redor muito longe, longíssimo (traduzido agora, incontáveis anosluz): hostes de seres minúsculos que habitavam, trémulos, instáveis, o raio de sol numa agitação constante. Dizia para mim: “está tudo cheio de poeira e eu não sabia antes deste raio de sol entrar pela janela”, maravilhada e ao mesmo tempo perto de um terror que não provocava paralisia. Era uma coisa de infância, um anúncio, tanta coisa que existe sempre ao nosso lado, que enche a nossa boca quando a abrimos, penetra nos cabelos, rodopia à nossa volta e nós sem darmos dela. A luz descobriu-a. Esta poeira também pousava nos móveis, nas vidraças das janelas, mas aí não dançava, esperava pelos nosso dedos que abriam sulcos, desenhos, nesse estado chamava-se pó e limpava-se. Nunca tive a certeza de que fossem a mesma.


Zazie dans le métro

- Moi, déclara Zazie, je veux aller à l'école jusqu'à soixante-cinq ans. (...) Je veux être institutrice.
- Pourquoi que tu veux l'être, institutrice?
- Pour faire chier les mômes (...). Je serai vache comme tout avec eux. Je leur ferai lécher le parquet. Je leur ferai manger l'éponge du tableau noir. Je leur enfoncerai des compas dans le derrière. Je leur botterai les fesses.
- Tu sais, dit Gabriel avec calme, d'après ce que disent les journaux, c'est pas du tout dans ce sens là que s'oriente l'éducation moderne. C'est même tout le contraire. On va vers la douceur, la compréhension et la gentillesse. (...) D'ailleurs, dans vingt ans, y aura plus d'institutrices : elles seront remplacées par le cinéma, la tévé, l'électronique, des trucs comme ça.

- Alors, déclara-t-elle, je serai astronaute pour aller faire chier les Martiens.

Raymond Queneau, Zazie dans le métro

...

Ecrire sans fin, François Vassivière

O Fazedor

Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavras fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e se tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo da chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho. 

A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando de feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que de momento procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar. 

Outra lembrança em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperava por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através das galerias que eram como redes de pedra e através de despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?

Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra. 


O Fazedor in Poemas Escolhidos,  Jorge Luis Borges

Selecção e Trad. Ruy Belo, Ed. Dom Quixote, Lisboa


14.11.15

Paris, je t'aime.

Jean-Philippe Charbonnier, Les Amourex, Paris, 1950


Así habían empezado a andar por un París fabuloso, dejándose llevar por los signos de la noche, acatando itinerarios nacidos de una frase de clochard, de una bohardilla iluminada en el fondo de una calle negra, deteniéndose en las placitas confidenciales para besarse en los bancos o mirar las rayuelas, los ritos infantiles del guijarro y el salto sobre un pie para entrar en el Cielo.


O fanatismo...

...é a morte da conversa. Não se consegue tagarelar com um candidato a mártir. Que dizer a alguém que se recusa a compreender os nossos argumentos e que, a partir do momento em que não nos inclinamos perante os seus, preferiria morrer a ceder? Antes os diletantes e os sofistas que, pelos menos, participam em todos os argumentos...

Do inconveniente de ter nascido, de E. M. Cioran, p. 104.

* * *

CAPÍTULO 62

1. Na cave do Elijah-o-impossível havia um mapa do mundo inteiro.

2. Para mim, olhar para ele era uma oração.

3. Uma oração que era do tamanho do mundo inteiro.

4. Quando cheguei a casa, fiz a mala, pus as minhas roupas lá dentro, a roupa interior, os sapatos, toalhas, o bilhete de autocarro de Houston (será que daria para viajar?), e peguei nela e andei pelo meu quarto.

5. Era uma viajante.


* * *

Mar - Enciclopédia da Estória Universal, de Afonso Cruz, p. 72

13.11.15

...

Just Can’t Wait - Joseph Lorusso

Libya, Where Art Thou?*

/Dawn at Tripoli, Libya, photo © Naziha Arebi/

It’s so hard to get informed about Libya these days. It’s like Libya doesn’t exist for the mainstream media. Not even a glimpse of life there, not even a small peek. Where are you Libya, how are you?

*(cont.)


10.11.15

«Isso irrita-me imenso. Como se estivesse na nossa mão dominar a doença, o que faz com que as pessoas que morrem sejam culpadas disso.»*

Obrigada ao Plúvio, que partilhou no seu blog uma ligação para a entrevista da revista Sábado a Maria Filomena Mónica.


*resposta dada no seguimento da observação de Dulce Garcia: No livro Imortalidade, Christopher Hitchens revolta-se contra a ideia de que a força de vontade é fundamental para superar o cancro.

Olhe, preciso de dinheiro

Aoki Tetsuo


Olhe, preciso de dinheiro.
Preciso de muito dinheiro. Quero abrir um negócio.
Algo meu, sabe como é. Estou farto de patrões.
Não posso passar a minha vida atrás de um balcão.
A levar todas as noites com a baba dos perdidos nas trombas.
Já não tenho paciência.
Com esta idade, já viu o que é.
Sujeitar-se a todos os labregos.
Já tentei noutros bancos, sim.
Pedi também aos meus pais, é verdade;
disse-lhes que era para me casar.
Não, não tenho casa, nem automóvel.
Mas, olhe, posso garantir com o meu corpo.
O meu fígado, senhor, tem que ver o meu fígado.
É fígado de motard. Isto parece encolhido e tal,
mas anda a mil.
E adiantado, não pode pagar nada como entrada?
Entrada, não sei.
Só se for o coração.

Golgona Anghel, Como uma flor de plástico na montra de um talho (Assírio & Alvim, 2013)

3.11.15

Domador de Caracóis

Quando for grande, quero ser
domador de caracóis.
É muito perigoso
-diz a mãe.

E pastor de libelinhas?
As libelinhas pastam na frescura do rio.
Sabes nadar sobre a água?
-diz a mãe.

Serei médico das árvores, é mais seguro.
Onde fica o coração das árvores?
-diz a mãe.

Vou aprender a arte de colecionar nuvens.
Choram muito...
-diz a mãe.


Sílvio, Domador de Caracóis, de Francisco Duarte Mangas

MESA

É apenas mais um dia na terra, dizes, e apresso-me de encontro
à menoridade de todos os começos: lírica, escura, pressurosa
métrica tomada de assalto pela luz de Inverno sobre
o vidro da mesa.


Depois da Música, de Luís Quintais