29.12.15

Rothko Chapel, Morton Feldman

«É melhor começarmos lá de trás e por Dominique Isaline Zelia Henriette Clarisse Schlumberger, protagonista de uma dessas histórias extraordinárias apenas possíveis na Europa do século passado. 

O pai Conrad era um físico, professor em Paris na École de Mines, que no início dos anos 20, em colaboração com o irmão engenheiro Marcel, idealizou um sistema à época completamente inovador para a extração dos metais e dos gases contidos no subsolo. 

Fundada a sua sociedade, os irmãos andarão num afã a dar a volta ao mundo inteiro, naturalmente bastante bem retribuídos pelo seu trabalho, sem nunca esquecerem a vocação para a investigação, tanto assim é que a Sociedade Europeia de Exploração Geofísica instituirá um prémio com o seu nome. 

A sua filha Dominique licenciar‑se‑á em matemática para depois se interessar pelo cinema, descobrimo‑la em Berlim como assistente de Joseph von Sternberg durante a filmagem de O anjo azul. Em 1930, encontrará e casará com o banqueiro Jean de Menil. 

Durante a ocupação nazi de Paris, a família emigrará para os Estados Unidos, onde o pai e o tio darão continuidade à sua sociedade de extração (sobretudo petrolífera, a sede ficará obviamente no Texas), enquanto Dominique e Jean, agora John, começarão a reunir uma extraordinária coleção de arte moderna, que chegará a ser constituída por cerca de dezassete mil obras entre quadros, estátuas, fotografias e objetos de vários géneros. 

Os dois valer‑se‑ão sempre de um forte empenho social e ético, colaborando com importantes expoentes da batalha pela integração e pelo reconhecimento dos direitos civis, ao ponto de serem promotores das primeiras mostras de arte inter‑raciais nos Estados Unidos e de fazerem ouvir a sua voz inclusivamente fora do seu país de adoção. 

Em 1964, encomendarão ao pintor Mark Rothko as decorações de uma capela a ser erguida em Houston. 

Embora os De Menil fossem católicos praticantes, o edifício não terá nenhum fim confessional, é antes concebido como local onde qualquer pessoa, independentemente da fé professada ou abjurada, possa encontrar espaço para a meditação, a oração e a contemplação. 

A construção arrasta‑se por muito tempo, só será aliás terminada em 1971. Rothko não chegará a ver os seus trabalhos nas paredes, pois, abatido por uma longa depressão, porá termo à vida poucos meses antes. 

Para a inauguração da Rothko Chapel será encomendada uma peça a Morton Feldman

Com quase dois metros de altura, corpulento, o olhar perspicaz por trás das grossas lentes de míope, Feldman sempre cultivara uma relação muito estreita entre a sua música e as artes figurativas, para além de que tinha sido um bom amigo do pintor desaparecido, vinte anos mais velho. 

Personalidade inteiramente laica, dotado de um péssimo caráter e de um humor cáustico, é aparentemente alheio a qualquer possível suspeita de misticismo. 

Como quase todos os compositores da sua geração, dera por si a escrever música quando o panorama parecia suspenso entre as lisonjas do acaso e os rigores do estruturalismo, mas ele, espírito demasiado livre para o segundo embora ainda assim desejoso de ter controlo sobre a matéria sonora de uma forma bem mais rigorosa do que teria sido possível abraçando a música estocástica, acabará por avançar pela música do século passado com um passo solene e completamente especial; ao ouvirmos as suas composições, temos por vezes a ilusão de a música ter sido uma descoberta sua, como se tivesse sido ele o primeiro a pôr a hipótese de os sons poderem ser pensados, organizados de certa forma e depois emitidos por um qualquer aparelho inventado para tal fim. 

A peça em questão supõe um pequeno número de executantes, flauta, celestino, coro misto, percussões e viola. As dinâmicas vão do pianissimo, literalmente no limite do audível, a momentos de maior concitação, embora privilegiando dinâmicas que se viram para o silêncio, a escansão rítmica é quase impercetível e só de  maneira a que se consiga apreender com o ouvido um arco de tempo suficientemente longo (algo de semelhante acontece ao ouvirmos a música gagaku japonesa). É um organismo que parece feito de vazio ao mesmo tempo que pulsa iridescente, as transparências de Feldman têm corpo e peso, uma espécie de milagre que nos obriga a rever aquilo que pensamos erradamente acerca da música moderna. 

Poderia ser suficiente, mas para o final da peça, que dura cerca de vinte minutos, o vibrafone conquista um ritmo regular e quase vivace sobre o qual se emancipa a viola para cantar uma melodia hebraica de absoluta e transcendente beleza. Uma epifania; a porta da casa em que estamos encerrados a abrir‑se para o mundo exterior.»