21.12.15

fome

Estou ainda na fase em que observo o recém-chegado, numa mesa de café. Já lhe posso tocar, perceber se tem as mãos frias, se prefere chá ou café, água fresca ou natural, e tudo o mais que se consiga subentender pela capa escolhida, a editora que o pariu e a graça com que se apresenta.

Fome, de Knut Hamsun, [editado em Portugal pela cavalo de ferro e traduzido do norueguês por Liliete Martins] chega-me em tons de azul, daquele azul de Picasso, na sua época triste. Não deixa de ser curioso, porque sempre achei que a fome era azul, tal como a pobreza.
Para meu deleite, o prefácio de Paul Auster (A arte da Fome) inicia com um excerto de Antonin Artaud. Se de Paul Auster pouco li (reconheço a minha antipatia por nomes tão "americanos"), Artaud vive no meu coração há já alguns anos e se a alzheimer não mo roubar, há-de acompanhar-me até à cova.


Aquilo que é importante, parece-me, não é tanto
o defender a cultura, cuja existência nunca 
impediu um homem de passar fome, 
mas sim o extrair daquilo que se chama cultura, 
ideias cuja força motivadora seja idêntica à da fome.



Da literatura da fome, recordo Abismo e outros Contos, de Jean Meckert, um livro que me deixou algumas queimaduras na ponta dos dedos e o coração mais dorido. As provações de Meckert confundem-se entre os narradores. 

«A miséria nunca chega de repente. Se não fosse assim, poderíamos lutar, saberíamos de cor as pontas por onde pegar, aprenderíamos a defender-nos em manuais de tuta-e-meia. Não, o que é horrível é que a coisa é insidiosa, vem aos poucos, pé ante pé, como uma sacana de uma tuberculose; pensamos estar de boa saúde, pomo-nos com bazófias e depois caímos de podres. E nessa altura não são os pulmões, a bexiga ou o pâncreas que são atingidos, mas o próprio moral e tudo o resto por acréscimo.»



Voltando ao "livro azul" e a Knut Hamsun, seu autor. Deste, sei apenas que ganhou, em 1920, o prémio Nobel da literatura e foi (grande) simpatizante do nazismo. O livro Fome data de 1890, não se esperando encontrar contaminações de ambos os flagelos.


Porque o Natal sempre me lembra a pobreza e abandono, ideia antagónica à maravilhosa realidade que se vive por essas dezenas de superfícies comerciais, é com Fome que irei esperar o menino jesus.