20.9.15

«A prova de vida»

(...)

Existia nesses anos uma lei ridícula que obrigava os cidadãos a pagar uma licença cara pelo privilégio de usar isqueiro, só porque o fabrico dos fósforos era monopólio do Estado. Nas cidades havia «fiscais da licença de isqueiro», que vigiavam os cafés e as esquinas, impiedosos, prontos a multar. Nas aldeias era a Guarda encarregada desse controlo, e daí nasceu a ideia de que valeria a pena pregar um susto ao Jaime, a ver se sim ou não conseguiam que falasse.

Combinaram com o cabo. Na próxima visita da patrulha chamavam à taberna o «Calado» – era a alcunha que tinha – e sem ele dar por isso metiam-lhe um isqueiro no bolso.

Fizeram-se apostas. Com o medo falaria. Ou pelo respeito à farda. Outros mantinham que não: ia ficar como sempre, a sorrir, a encolher os ombros, a boca cosida.
– Se lhe dizem que o prendem, fala, ó se fala!
– Não fala. Nunca falou, não é agora que vai falar.
– E o medo? A multa?
– O «Calado» não é de medos.

Realmente não era. Na força dos trinta, seco, musculado, se havia desastre ou perigo era ele o primeiro a acudir. Pouco antes, no incêndio de uma corte, enquanto os outros gritavam e corriam desatinados com baldes de água inúteis, ele arrombara a porta aos pontapés e, sem se importar das queimaduras ou do risco, metera-se por entre as chamas a salvar as cabras do vizinho.

Formou-se uma roda em volta dele e do soldado que o revistava – tinham-lhe dito que houvera denúncia – todos a fingir de espantados quando o isqueiro apareceu.
– A licença? – perguntou o cabo, ríspido.
Jaime esboçou um sorriso, encolheu os ombros a mostrar que aquilo só podia ser brincadeira. Então, pobre como era, onde ia arranjar o dinheiro para um isqueiro?
– A licença? – insistiu o cabo.
Jaime teve o mesmo sorriso plácido, mas logo se retesou quando o cabo deu um passo em frente, a fazer-se furioso, e lhe segurou o braço:
– Então que temos? Falta de respeito? Hein? Falta de respeito?
E a cada palavra uma sacudidela, o corpo rígido, a palidez a aumentar, traindo a emoção. Os outros gritavam-lhe que falasse, negasse, assim que respondesse o cabo deixava-o em paz.
– Diz-lhe que não é teu.
– Mesmo que vendas a burra não te chega o dinheiro para a multa!
– Fala, sacana! Então não tens língua?

Cercavam-no aos empurrões, ele a suar, lívido, a boca escancarada, os braços paralisados. A taberna enchera-se de gente que tinha vindo ver, e os últimos a chegar, mal informados, julgavam que era a sério, mandaram que fossem avisar a mulher.

O cabo, razoável actor, demonstrava agora como se perde a paciência e, com grande autenticidade, num gesto terminante, deu-lhe voz de prisão. O Jaime arregalou os olhos, estremeceu, caiu fulminado.

(...)


in Os lindos braços da Júlia da Farmácia, José Rentes de Carvalho