26.7.15

Do capítulo da devolução

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um 
corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino tristeza de menino a
quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer 
de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de 
tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os 
que ainda podem interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até 
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o 
espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura 
que pela rua arrasta a sua condição de animal 
fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas 
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de 
um soldado a arder em febre, aves a percorrer o 
seu novo deserto

mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do 
homem é doce e iluminada como a noite como 
um rasto de fumo sobre os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras 
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras 
paragens; outra sombra, outros olhos seme-
lhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu 
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os 
meus, altos como cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais 
que descer as escadas, fechar ainda a porta do 
teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria 
vida

agora posso sonhar até deixar de te ver


belo rio sem lágrimas