16.7.15

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Escrevo rodeado de pessoas por todos os lados. Este café é a minha vida. Quando o descobri há um ano nasci. O café tem sempre coisas para dizer. Podia estar aqui a vida inteira a escrever sobre ele e as pessoas que chegam e o usam como coisa imóvel. Não. O café tem vida. Ou eu não estivesse aqui e as minhas veias não fossem as do café.

Já dormi com a mulher que me serve a «bica». Agora já não dormimos porque não lhe fiz um filho. As pessoas que vêm ao café não sabem disso. E eu rio-me quando a mulher dá aos olhos dos visitantes as suas ancas (sujas).

Escrevo rodeado de pessoas e forçosamente tenho de escrever a minha vida. Quando houver um lugar vago no café vou-me embora. Deixo a minha vida e a caneta.

Entretenho-me com as pessoas. Combino-as. Meto-as depois na minha vida. Assim a caneta vai forçando o papel: uma rapariga e um rapaz. As pernas que adormecem por baixo da mesa uma na outra. E eu vejo e compreendo. Aqui não se pode amar à vontade. Um velho pede um café e fica toda a tarde. Com certeza. (Podia estar toda a vida aqui. Já não lhe interessam os lugares onde possa estar mesmo com um sorriso. Está aqui porque a morte deve chegar aqui. Chega a todos os lugares. Não sabe onde a morte o vai apanhar. Por isso pediu um café como podia ter pedido a morte).

Um dia hei-de ser velho... Não. Nunca serei velho. Mato-me. Há mais, muitas pessoas no café. Mas a tinta falta-me. Procuro a tampa e enrosco-a no aparo e escondo a caneta no corpo interior do casaco e deixo de pensar. Como se fosse a entrar no sono sem nada na manga.

Bem, não acreditem em mim. Nunca acreditem. Este truque da falta de tinta foi antes uma falta desangue. Não tinha sangue para entregar às pessoas. Não tinha um sorriso para quando elas mo devolvessem. São demasiadas pessoas para mim. O bluff foi perigoso porque me deixaram de ler. Mas amei-a bem. Senão não tinha o sangue limpo para amanhã ir pelas ruas e fabricar a mulher noutra cidade.

Agora, o velho levanta-se sem ruído. Não gosta de entrar na vida dos outros. Ele já está morto. Quase tinha medo de respirar no café.

Aproveito a saída do velho para sair do meu lugar, da minha vida e entrar na cidade. Antes de desaparecer, ainda volto a cabeça para trás e ainda vejo o velho a olhar a mão. À saída do café conta o troco. E oiço o velho dizer (palavras certas na memória): «Não me podem enganar. Não me podem enganar». Convence-se a si próprio. A mulher do café engana no troco este velho quando ele vem sem óculos. E o velho sabe e repete sempre a cena: olha a mão, revolve as moedas e por fim sopra «não me podem enganar».

Entro num eléctrico e penso que o velho nunca pode enganar a morte.



[daqui: café central]