28.3.19

Are you Uncle Vanya?

PRIMEIRO ACTO 

Jardim. Está à vista uma parte da casa com terraço. Na alameda, debaixo do álamo velho, está posta a mesa para o chá. Bancos, cadeiras; num dos bancos, está a guitarra. Perto da mesa há um baloiço. — Passa das duas, o céu está carregado. 

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Marina (velha gorda, de poucos movimentos, está sentada ao lado do samovar, a tricotar uma meia) e Ástrov (passeia ao lado). 


MARINA (enche um copo) — Toma, paizinho. 

ÁSTROV (aceita o copo com pouca vontade) — Não me apetece. 

MARINA — Talvez queiras um copinho de vodca? 

ÁSTROV — Não. Nem todos os dias bebo vodca. Além disso, está abafado.

   Pausa. 

Mãe Marina, há quanto tempo nos conhecemos? 

MARINA (reflectindo) — Há quanto? Deixa cá ver... Chegaste aqui, a esta terra... quando?... Ainda    era viva a Vera Petrovna, a mãe da Sónia. Com ela viva, ainda cá vieste ver-nos durante dois  invernos... Pois bem, devem ter passado então onze anos, ou coisa assim. (Pensa um pouco.) Ou  mais... 

ÁSTROV — Mudei muito desde então? 

MARINA — Muito. Naquela altura eras um rapaz novo e bonito, agora envelheceste. Já não és aquele rapaz bonito. Já se sabe: bebes vodca, é também por isso. 

ÁSTROV — Pois... Em dez anos tornei-me outra pessoa. Mas porquê? Trabalho demais, mãe Marina. Estou a pé de manhã à noite, não tenho sossego, e à noite, quando me meto debaixo dos cobertores, tenho medo que me obriguem a ir ver um doente. Desde que me conheces, este tempo todo, ainda não tive um único dia de folga. Então, envelheci... pudera não! E a vida, também, é um tédio, uma estupidez, é cá uma porcaria de vida... Atola-nos. À nossa volta é só gente esquisita, todos, sem excepção; vivemos ao pé deles dois ou três anos e, sem darmos por isso, ficamos também uns esquisitões. É fatal como o destino. (Retorce os bigodes compridos.) Olha só que bigode  enorme... Bigode estúpido. Tornei-me um esquisitão, mãe Marina... Aparvalhar não me aparvalhei, Deus é misericordioso, ainda tenho a cabeça no lugar, mas os sentimentos é como se ficassem embotados. Não quero nada, não preciso de nada, não gosto de ninguém... Talvez só de ti.  (Beija-a na cabeça.) Na infância tinha uma ama como tu. 

MARINA — Se calhar estás com fome? 

ÁSTROV — Não. Na terceira semana da Quaresma fui a Malítskoe, uma epidemia... Tifo  exantemático... As isbás a abarrotar de doentes. Imundície, um fedor, aquela fumarada, os vitelos pelo chão misturados com os doentes... Recos... Passei lá o dia todo a trabalhar, sem comer, sem uma  pausa, depois voltei para casa, e olha, também não me deixaram descansar: trouxeram o  agulheiro do caminho de ferro; ponho-o em cima da mesa para lhe fazer a operação, morre-me nas  mãos de repente, na anestesia. Pois, e foi nesse momento, o mais inoportuno, que os meus sentimentos despertaram, fiquei com remorsos, como se o tivesse matado eu, de propósito... Sentei- me, fechei os olhos... assim... e pus-me a pensar: quem viver daqui a cem ou duzentos anos, aqueles  para quem nós agora estamos a abrir o caminho, será que eles se vão lembrar de nós com palavras de  carinho? Não, mãe Marina, não se vão lembrar de nós! 

MARINA — Se as pessoas não se lembram, lembra-se Deus. 

ÁSTROV — Obrigado. Disseste bem.



/O Tio Vânia, Anton Tchéckhov/