26.7.16

A Roda

Já não tinha dores e as recordações de outros tempos pareciam
vir juntar-se à ampola que a enfermeira lhe injectara na veia.
Acomodou a cabeça na almofada, fechou os olhos, um
sono estranho andava ali por perto.
Viu-se recém-nascido na roda. A mãe a afastar-se.
– Não vás, mãe! Não vás.
Ficou dentro de um cesto. Era Fevereiro, tê-lo-ia ao menos
embrulhado nuns farrapos?
Não, era um berço de baloiço, com véus de cassa azuis,
mantinhas de lã com passarinhos bordados e as mãos finas
da mãe sempre atentas.
Mas era um cesto e diante dele desfilavam sombreados os
berços cuidados dos seus filhos, chiu, dormem!
– Esta gente o que faz aqui?
– Não está aqui ninguém. São horas de descansar!
Eram eles, eram elas. Devia ser cega aquela grafonola! O
quarto estava cheio. Todos ali à sua volta, os heróis de todas
as suas façanhas, as mulheres que devassara como um lobo
faminto, os amigos, os inimigos. Os invejosos e as putas, os
cornudos e as velhacas.

Filho de pais incógnitos, ouviste? Incógnitos!
– Fora daqui, canalha infame! – Se pudesse voltar a cabeça
para o outro lado… Mas não tinha forças. – Pulhas!
– Tem muita goela o Sr. Venâncio!
Gornem de inveja!
Ele, que nunca fora filho de ninguém, fez-se o Sr. Venâncio.
Não era cá mestre isto ou aquilo, compadre ou tiozinho. Alto
lá! Sr. Venâncio, comerciante e fiador de muito soberbo que
lhe ferrou o calote.
– Tanto filho, Sr. Venâncio!
Tanto filho. Para ele que não se importaria de ter doze,
ia a meio!
Os seus filhos! Deus os abençoasse de bons que eram. E
escorreitos. Sem vaidades, e tão lindos! Adiante, saíam à mãe,
que tinha sido uma boneca nos seus tempos.
– Está agitado! Assim vou ter que o prender à cama!
Ela outra vez, a toleirona! E ele era lá um cão para aquela
grandessíssima porca o ameaçar com cordas? Camela!
Aquietou-se, fingiu dormir e fugiu dali pra fora. Foi sentar-se
no jardim do coreto a ouvir os pássaros.

Que dias, que lágrimas, que fome. Mas que pagodes também!
Tudo tão longe e tudo ali à mão. Embaciavam-se-lhe os
olhos e aí vinha o tempo a devolvê-lo moço à força da meninice.
Sem sapatos, rotos os calções, puída a única camisola.
Filho? Filho da puta era o que lhe chamavam. A princípio
chorava, depois as lágrimas foram endurecendo como a rocha
onde secam as fontes. E fez-se um homem da raça das fragas
que não temem as intempéries mas escondem no fundo das
cafurnas a piedade sempre pronta a acolher aves e ninhos.
Começou a trabalhar na fábrica da conserva aos cinco
anos. A sua tarefa era enrolar os cigarros aos homens que não
podiam perder tempo.

– Ó fumam, ó trabalham. Vá!
E ele, com os seus dedos de passarinho, enrolava os Águia
com todo o esmero, acendia-os, puxava a fumaça e lá os
distribuía de boca em boca.
– Venâncio, saca-me daqui a beata antes que me quême
os beços.
E ele acudia sempre a correr, fumando o que restava da
saliva amarelada dos outros.


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Porta Sim Porta Não, Julieta Lima