25.1.16

II - Dois Candidatos

Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podridão dos vereadores em particular, e da humanidade em geral, prometeu a onze retratos, que tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro social com suas mãos impolutas. 

Neste propósito, nem ao menos consentiu que o vigário lhe mandasse o Periódico dos Pobres do Porto, de que era assinante emparceirado com mais quatro reitores limítrofes, e o mestre-escola e o boticário. 

Um dia, porém, quando ele saía da festividade de S. Sebastião, cujo mordomo era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graúdos lavradores da sua freguesia e das vizinhas. Noutro grupo, falava-se do sermão, e da constância do santo capitão das guardas do bárbaro Diocleciano, e da desmoralização do império. 

Estas puxadas reflexões era o boticário que as expendia, coadjuvado pelo mestre de primeiras letras, sujeito que sabia mais história romana do que é permitido a um professor da preciosa e capitalíssima ciência de ler, contar e escrever, pelo que o sábio vinha a granjear para a humanidade a ciência, e para ele nove vinténs e meio por dia. E comia o sábio estes nove vinténs e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e sobejava-lhe tempo para ler história! Pudera!… Os governos davam-lhe férias grandes ao estômago, em proveito do espírito. Se ele andasse bem nutrido e sucado de tripa, não aprendia nem ensinava coisa de monta. Que a pobreza é o estímulo das maiores façanhas da inteligência. Paupertas impulit audax. Isto que o Horácio faminto dizia de si, acomodam-no os regedores da coisa pública aos professores de primeiras letras; porém, outros muitos versos do Horácio farto, esses, tomam-nos eles para seu uso.


A Queda de um Anjo, (do grande) Camilo Castelo Branco

(da biblioteca digital da Porto Editora)