16.12.15

o segredo

Gelatina tem um segredo. É um segredo tão grande, tão grande, que lhe salta pelos olhos. É por isso que fica corado quando a ideia lhe atravessa o pensamento. Falar nele, nem pensar, os lábios delicados viram chumbo, esmagam qualquer palavra mais traiçoeira. O seu segredo é a sua maior vergonha.

Gelatina ainda tentou camuflar a vergonha, foi por isso que se deixou engordar, engordou tanto até ficar obeso, mas o segredo também ganhou volume, começou a transpirar palavras, gestos comprometedores. Era como se tudo o que dizia, tudo o que fazia, denunciassem o peso que transportava na consciência.

Gelatina aprendeu, por experiencia própria, que o remorso ataca sobretudo à noite. Ensaiou mil e uma maneiras de o despistar, chegou a contar todas as ratazanas que existem à face da terra para ver se agarrava um sono salvador, mas o segredo traz a insónia colada à pele, tem todo o tempo do mundo para espalhar o seu veneno.

Gelatina também sabe que o seu segredo é uma flor de estufa que só sobrevive no mundo da mentira. Que o remorso cresce a cada dia, porque não o pode partilhar com os amigos. Por isso, resolveu encará-lo de frente. Sacou um lápis, estendeu a folha branca, pesou cada palavra, evitou adjectivos. Foi assim que passou o segredo a limpo.

Gelatina tinha os braços dormentes quando acabou de escrever a sua confissão. Colocou um ponto final – é o que sempre acontece com tudo o que é importante e definitivo – mas, pensando melhor, podia ter utilizado as reticências. Feitas as contas não tinha apenas um, mas muitos segredos no armário. Sentiu-se exausto.

(…)

Nem tudo começa com um beijo, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira