6.9.15

flores

Estava junto aos escombros do meu pai, com os restos dos nossos sentimentos à deriva. O meu corpo ainda dizia o nome dele muito baixinho, como se fosse sangue a correr nas veias. As lágrimas não caíam, ficavam suspensas numa antecâmara qualquer do coração ou lá de que lugar é esse onde as lágrimas são laboriosamente fabricadas.

   A Clarisse estava ao meu lado. Estávamos de braço dado, ela tinha a cabeça encostada ao meu ombro.

   Atrás dos meus óculos escuros via as pessoas no enterro, a Carla estava tão bonita, de preto, com a dor no rosto, os cabelos lisos e as coxas a sair do vestido curto, mas não podia pensar naquilo, era o enterro do pai, ainda por cima a Carla é minha prima direita. Os destroços da morte por todo o lado, nas caras das pessoas, nas recordações. A mãe gritou algumas vezes, Zé, Zé, Zé, era o nome do meu pai, e foi nessa altura que me caíram umas lágrimas, não tanto por ele, naquela serenidade de cadáver, mas pela dor da mãe, tão pungente e catártica, tão siciliana na sua forma de se manifestar, cada Zé que ela gritava era uma facada no ar, Zé, Zé, Zé.

   O calor era tanto, o suor escorria-me pelas costas abaixo, não, não era suor, era a língua da morte a lamber-me a coluna de cima para baixo, a arrastar-me para o chão, a língua quente dessa estranha entidade que nos transforma em terra, que transforma tudo em terra. Sentia-lhe o hálito a flores, porque ela não fede como seria crível, tem o bafo das coroas de rosas e margaridas e gladíolos com que enfeitamos os caixões e mais tarde as campas. Cheira tudo a flores, o fim das coisas cheira a flores, não é a esgoto e a podre. Zé, Zé, Zé, gritava a mãe, e a morte a lamber-nos as costas, sem parar, com a ponta da língua muito fina a passar pelos corpos dos vivos, como quem toma um aperitivo.

   E, enquanto o padre mandava o pó voltar ao pó, eu abençoava Deus com blasfémias.

Flores, Afonso Cuz