26.9.15

7

Invariavelmente, logo na primeira noite do primeiro dia de temporada de ausência comercial do condómino caixeiro-viajante, chegava o seu substituto e era-me impossível dormir, pelo menos até o escape do carro lhe estrondear o gasóleo mal queimado da retirada, porque o quarto das cópulas era mesmo por cima do meu e as ilegítimas deveras mais barulhentas.

«Ah, o susto que apanhei certa vez, a despensa abastecida e arrumada, o saco do lixo na mão - e eu, que competia comigo próprio pelo expediente mais silencioso, saindo na paz das desoras com o excesso de confiança dos bem sucedidos, a porta já fechada atrás de mim (uma obra de arte, havias de ouvir embora o ponto tenha sido exactamente a inaudibilidade), quando ouço ao descuido a do andar de cima a abrir, a luz das escadas acesa e imediatamente os passos descendo, expeditos, tarde demais para voltar a entrar e tarde demais para me pôr a descer à bruta, o homem a ver-me, parado a olhar para mim e eu feito pedra a olhar para ele, depois o sorriso lambão do que acabou de comer para o que julga ter acabado de comer também, o cheiro nauseabundo de um resto de colónia barata naufragado nos humores fortes da cópula, piscando-me o olho, dando-me passagem, e eu a custo reaprendendo a andar, pensando em cada degrau, o homem ainda de respiração funda do esforço fresco atrás de mim, eu abrindo a porta da rua e segurando-a cavalheiro para que ele saísse, Obrigado, apontando para a carrinha e  perguntando se queria uma boleia, Não vale a pena, não vale a pena; moro aqui perto, até ao alívio da esquina dobrada, agora o gozo de estar fora da vista e os gestos espontâneos dos passos voltando a mim enquanto o homem de resistência quente começava a dar ao arranque, o gorgolejo macabro de tanto gasóleo em cilindros velhos, explodindo, explodindo pela madrugada fria e o que eu me ri, de mim para mim uma carrinha amarela e velha, a mais absurda ferramenta para a discrição do amante ilícito visitador. Mas com o moralismo fácil que corre por estes condomínios, ninguém alardeava escândalo?» 

Imoral, mesmo imoral, só aquilo que afecta e descaracteriza a rotina, enfim, a originalidade que incomoda a mecânica relojeira da repetição dos eventos - e que só não é mais nefasta porque a rotina defende-se sendo um bicho voraz, super-omnívoro, que come e digere tudo o que lhe apareça à boca ou à distância da língua, ainda que nojento: comeu, naturalmente, o exercício amoroso da condómina esposa do condómino caixeiro-viajante e do amante de modo que, quando eu me mudei para o apartamento, já eles não eram novidade para ninguém; e não só os comeu e digeriu como os defecou e fez adubo e todo o condomínio passou a acertar a libido pela deles, espectáculo tão pouco diferente, debalde a diferença de décadas, do da minha rua da infância, os conterrâneos em noite de janela pela brisa fresca após o dia forte de estio vendo sair o conterrâneo adúltero, eles para elas e elas para eles Lá vai ele ter com a outra, toda a rua fedendo a colónia, eles machamente nostálgicos vendo a potência sumir-se nos farolins do carro curvando o cruzamento e elas espojadas descalças no sofá feio da sala como se fosse vermelho e o esperassem, o azul da televisão quase sem som e os condóminos do rés-do-chão que fingiam dormir acordando à chegada da carrinha, o apagamento do motor uma explosão como outra qualquer e o amante estrangeiro semi-condómino Sou eu no intercomunicador, ela sem voz de resposta abrindo a porta, Lá vai ele ter com ela e os bigodes húmidos preambulando o minete, Já deve estar de perna aberta, Não digas isso, malcriado, cócegas na barriga e beliscões marotos avivando a carne dormente de tanto tempo detergente, os condóminos esposos do rés-do-chão pondo-se agora em cima das respectivas condóminas esposas do rés-do-chão, funcionários bombando síncronos à esquerda e à direita, as bocas deles e delas abrindo e fechando como peixes vivos na lota até ao despejo dos dois sacos regulares, lubricidade que continuava à solta pelo dia seguinte, outro ânimo no trânsito das escadas, ditos brejeiros nos cumprimentos e em tarde de limpeza era ver os condóminos esposos do rés-do-chão entre o fim do almoço e o regresso aos serviços subindo à vez como quem precisa de ir às águas-furtadas só para se roçarem na Muda à passagem, apalparem-lhe o cu ou as mamas, o cu e as mamas, amiúde o tabefe da honra onde liam consentimento, e a excitação acrescida pela falta de voz para delatar.

Às vezes pensava como vivia o meu amor as cópulas do segundo esquerdo: masturbar-se-ia?

(...)


[O Condómino, António Gregório, p. 39, 40, 41]